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Faze o que tu queres será o todo da Lei.

Não tem sido incomum observar o uso indevido e malicioso das leis em todas as suas esferas de aplicação; e a imparcialidade desejada como reza a teoria do trabalho jurídico é uma das artes mais delicadas justamente pelo aparato legal se basear, idealmente e não exclusivamente, em questionamentos filosóficos e na experiência histórica da humanidade. De maneira geral corpos legais buscam abranger e reger as relações das pessoas entre si, entre grupos e a relação destes com o meio ambiente e servem para que seja possível a convivência saudável e produtiva entre partes interessadas ou atuantes sobre um mesmo objeto ou espaço. Assim sendo, qualquer pessoa, empresa, grupo ou nação que cometam atos que interfiram no equilíbrio da convivência social estão sujeitos a penalidades variadas.

De fato, o assunto é demasiadamente profundo: somos condicionados a compreender a realidade de acordo com nossas experiências, portanto o mecanismo legal não atende a todas as demandas, como é o caso da legalidade ou ilegalidade do aborto ou do consumo de psicotrópicos. Sabemos também que a necessária sutileza intelectual para a feitura e o trato desses regulamentos muitas vezes não é alcançada e em muitos casos suas premissas partem de mentes tacanhas que colaboram apenas para manter grilhões reducionistas da capacidade humana.

Ao nos depararmos com informações jornalísticas, que menos ou mais apresentam panoramas de realidades locais e internacionais, podemos facilmente constatar que vivemos em meio a uma epidemia que assola as bases legais da sociedade cujos sintomas, entre vários, são ausência de refinamento intelectual e incapacidade de considerar a realidade enquanto conceito multifacetado. Mas esse é um dos lados de um problema maior, pois a situação se transforma em um pesadelo quando percebemos, por exemplo, a assustadora realidade de que vivemos em um mundo onde muitas pessoas nutrem a descrença sobre a esfericidade do planeta. Observamos, em pleno século XXI, a desconfiança sobre a ciência, a filosofia e os sujeitos que as produzem (e que dedicam ou dedicaram uma vida inteira sobre esses campos); estes são então considerados partícipes secundários ou finais, menos importantes do que as palavras de pastores e políticos que em sua maioria são inábeis atendendo apenas demandas predatórias e escravagistas em todos os sentidos. É engraçado e até perturbador como que muitos respeitam a opinião de um médico ou de um padre, mas ignoram a opinião do cientista social, do filósofo ou do historiador. Isso me faz lembrar de uma cena do filme Hipátia, onde logo após a destruição da biblioteca de Alexandria, os invasores se perguntavam o que são as estrelas e como funciona o céu.

Temos vivido exatamente uma experiência análoga à esta cena irônica e triste: a destruição ou desconsideração sobre o conhecimento ainda que sejam feitas as mesmas perguntas que cientistas e filósofas(os) já responderam com competência ou possuem meios para fazê-lo. Não construímos uma estrada sem o conhecimento de um engenheiro, mas construímos facilmente políticas sociais e legais sem especialistas. O colapso social não é por falta de conhecimento e soluções equilibradas; ele é fruto de interesses corporativos, privados e pessoais que solapam tudo o que foge a esses interesses. O desacerto sobre a convivência social é fruto do egoísmo e do individualismo, o que nada tem a ver com o sentido de individualidade.

Há, no fundo, uma má interpretação do texto e da linguagem como uma cegueira e surdez coletiva onde as palavras se fazem hieróglifos indecifráveis, uma língua já perdida, ou onde a ânsia por realização individualista é colocada em primeiro plano em detrimento do coletivo e do velho bom senso. Talvez estejamos vivendo um momento de preguiça e desinteresse sobre o exercício do pensamento, causando atrofia intelectual, pois pensar e refletir demandam disciplina e prática. Em contraponto, gestores e detentores do poder buscam conduzir a sociedade ao afogamento na maçante rotina da sobrevivência braçal onde o tempo é consumindo, não restando energias suficientes e muito menos o ócio necessário para que o exercício do pensar seja praticado. O resultado é a busca e aplicação de soluções imediatistas e simplistas, em sua maioria retrógradas e que nutrem uma gama de preconceitos; para as esferas dominantes é mais fácil conduzir uma massa uniforme, cortando qualquer expressão original, do que servir a um conjunto de indivíduos pensantes e que invariavelmente questionarão qualquer atividade opressora.

Em uma existência humana rica e com tantas criações dignas de o ser humano ser realmente considerado uma divindade, muitos escolhem o aspecto do próprio Diabo aos moldes da desequilibrada imaginação cristã. É inaceitável que ainda não tenhamos aprendido como utilizar o melhor da história da humanidade enquanto herança e tenhamos escolhido repetir mecanicamente erros milenares chegando ao ponto de perceber as relações humanas a partir de valores aproximamos ao código de Hamurabi.

E dentro desse cenário nada convidativo estamos nós, Thelemitas, Crianças Coroadas e Conquistadoras, buscando ou exercendo a Verdadeira Vontade individual. Mas às vezes, muitos de nós mais se parecem Crianças Desmamadas e Choronas citando copiosamente o Livro da Lei para satisfação pessoal. Neste caso a Lei “Faze o que tu queres” corre o risco de banalizar-se à galope, alimentada por distorções úteis como justificativas porcas para mentes ainda inaptas ao entendimento dessa filosofia muito mais refinada e sutil que as bases filosóficas que compõem as leis comuns da sociedade.

Sim. Esse tipo existe. Esse tipo clama “os escravos servirão” para justificar atos inumanos sobre outras pessoas. Esse tipo usa Liber Oz irracionalmente como justificativa para liberar tensões psicológicas não resolvidas. Não basta ler um texto e considerá-lo como uma linha rígida; é necessária interpretação, e por isso que discutir Liber AL é considerado foco de pestilência: não se pretende que Thelema seja cortada em fatias chamadas escolas como fizeram os cristãos e os cabalistas judaicos. Que todo tolo se apoie nos comentários do Livro da Lei antes de expor ideias próprias. Aliás, não apenas os comentários de Liber AL são úteis, existe um corpo teórico composto por libri e ensaios que nos orientam na compreensão de Thelema enquanto filosofia.

O primeiro trabalho do Thelemita ou do buscador de Thelema não é realizar com primazia a meditação, asanas, pranayama, goécia, Liber Resh, Rubi Estrela, tarot, etc.. O primeiro e mais básico trabalho é conhecer, entender e aplicar diariamente Thelema. Se dizer Thelemita não é suficiente quando não extirpamos do self preconceitos e atitudes incivilizadas. E na verdade, não precisamos de Thelema para agir civilizadamente. É bem curioso quando muitos repetidamente admiram grandes filósofos e, em contrapartida, parecem apresentar um déficit de compreensão sobre textos simples de Thelema, como por exemplo O Dever. Me pergunto se realmente entenderam obras clássicas como Assim Falou Zaratustra ou A República.

O entendimento da Lei de Thelema e sua aplicação só é possível com certa disciplina. Esta atua de modo que possamos alcançar um objetivo (Verdadeira Vontade) e para que as naturalizadas camadas do self sejam reconhecidas e despedaçadas. E isso pode ser doloroso para pessoas apegadas a convicções: está preparada(o) para ver a verdade sobre si? Então estará para Thelema. E a consciente Verdadeira Vontade deve ser irrestrita. “Faze o que tu queres”, ou seja, aja de acordo com sua mais alta Vontade, é exaustivamente elucidado diretamente ou entre linhas em muitos textos de Mestre Therion e de importantes thelemitas como Soror Meral. Mas não é demasiado esclarecer que esta fórmula magicka não significa ações irresponsáveis do desejo impensado; aliás, em Thelema, nos tornarmos responsáveis pelas nossas vidas e suas ocorrências físicas, mentais e espirituais e os salvadores são dispensados assim como os culpados são livrados do julgamento.

Vontade – do grego, Thelema – é a sincera consciência sobre si. É a verdade mais sublime, intransferível, incomunicável que é condensada na frase-sigilo criada pelo sujeito conhecedor. E aqui há o total equilíbrio, assim como no O Ajustamento, oitava chave do Tarot. Portanto, a pessoa Thelemita (aquela que conhece sua Vontade) lê Liber Oz e entende que ainda que seja seu direito matar, sabe que este não é sua Vontade. E mesmo se assim o for, entende que a morte se dá de muitas formas. Veja que Liber Oz não fala de assassinato, e qualquer pessoa que proclame que sua vontade é o assassinato, está com sérios problemas ou é psicopata. E nestes casos há as leis que regem a sociedade: “Todo Homem e toda mulher é uma estrela” (ainda que muitos sejam inconscientes de seus brilhos ou órbitas) e, portanto, todos, independentemente das infrações, têm o direito de passar por um processo de julgamento idôneo e sofrer penalidades, no mínimo, humanas.

A Lei de Thelema não é para ser considerada como uma apoteose à permissividade. Se alguém comete um crime, não há justificativas que endossem o direito de penalizar através de outra ação criminosa. Isso é irracional. Sabemos muito bem que no clamor das emoções frente a abusos como estupros, pedofilia, roubos, etc. podemos desejar, depredar, destruir, assassinar. Mas isso não é vontade, é descontrole e incapacidade de reflexão.

Em Liber II nos é informado que o exercício da Verdadeira Vontade anula os conflitos. Me parece, quando observo cansativas discussões, que ninguém está realmente exercendo suas Vontades, ou sequer tentaram realmente alcançá-la tamanha são as divergências e egos afetados. Talvez a famosa Auroville seja um exemplo empírico desse ideal, a sonhada sociedade alternativa cantada por Raul. Então é isso: que possamos ser verdadeiros conosco, que batalhemos na busca e exercício sincero da Verdadeira Vontade e que sejamos as crianças da descoberta, da liberdade e do amor sob vontade, e não bebês chorões, mimados e que urram citando Liber AL apenas para ter razão.

Amor é a lei, amor sob vontade.

Autora: Soror Lótus.