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Autoria: Frater אל-אמא-יה

Já ouvi muitas pessoas dizerem que os textos thelêmicos são muito cifrados, cheios de metáforas, excessivamente complexos e com floreios desnecessários. Também já ouvi que Thelema deveria se popularizar mais, a ponto de que todos possam ter acesso e implementar a práxis thelêmica na própria vida. Nessa linha, defendem que seria necessário reescrever de forma mais clara todas as obras thelêmicas e os textos do currículo da O.T.O, ou apresentar esses trabalhos de forma mais palatável (workshops, podcasts, videoaulas, cursos, etc). Em outras palavras, pedem por exegetas capazes de capturar os anseios do estudante que se interessa pelo caminho da iniciação!

Essa é uma questão que sempre me fez matutar bastante, sobre a qual acho importante trazer algumas inquietações pessoais e provocações.

[Aqui é importante deixar um disclaimer (nunca se sabe quem e como vai ler…): este é um ensaio que reflete minhas ideias e reflexões pessoais e que não necessariamente refletem qualquer posição oficial da O.T.O.].

Primeiro: quem é o destinatário a que se visa comunicar? Alguém que tenha interesse em se tornar uma Irmã ou Irmão, ou o povo em geral que pretende aceitar a Lei de Thelema?

A proclamação da Lei e dos princípios gerais de Thelema para as grandes massas, em linguagem simplificada, é um dos belíssimos papéis da E.G.C.: o exordium do Livro e da Verdade; levar a todos quantos queiram a Palavra emanada para o presente Aeon.

Mas, para os iniciandos e prováveis iniciandos, seria papel da O.T.O. digerir seu currículo e vomitar estudos prontos de Thelema e Magick, pré-processados e preferencialmente em áudio e vídeo, já que ninguém parece ter paciência ou mesmo capacidade intelectual para ler e interpretar textos escritos? Se for para tentar ler a redação original de Liber AL… aí já seria querer demais. Quanto pedantismo querer que alguém se esforce para ler, em inglês, o livro sagrado, fundamento de toda iniciação na era atual!?!

Muitos ficam tão perdidos em um mar de informações que sequer apreendem que as instruções da tradição oral são um tesouro inestimável, a ser complementado pela literatura existente e investigações pessoais coerentes.

No entanto, fato é que boa parte dos que se dizem thelemitas não conseguem resistir a um exercício reflexivo sincero sobre a aplicação da Lei na própria vida. Ao mesmo tempo que propagandeiam a importância do Quarto Poder da Esfinge, não o praticam. Alardeiam ao mundo um Conhecimento que somente poderia ser obtido pela vivência e não pela simples repetição de textos – essa dinamicidade e liquidez talvez seja uma das disfunções do tempo horusiano. E além: a leitura precisa de racionalidade, profundidade e reflexão.

Para alguém conseguir tomar um sorvete e saboreá-lo de forma apropriada, é preciso AO MENOS saber direcionar a massa doce para o rumo da boca. E mais: vencido o primeiro passo (saber como levar o sorvete à boca), ainda há outra questão, relativa à qualidade da massa. Afinal, há sorvete e há sorvete: existe sorvete de pistache aromatizado artificialmente e existe sorvete bem trabalhado de pistache de Bronte. Quem prova tem alguma competência mínima (experiência de Vida) para diferenciar uma coisa da outra? Afinal, um desses sorvetes nem de pistache realmente é; trata-se apenas de uma mistura de corante e aromas.

As massas sem rumo se contentam em errar a boca ao tomar o sorvete, ou, na melhor das hipóteses, em ter qualquer sorvete, mesmo que inteiramente artificial e prejudicial à saúde. Ainda assim, há sorveterias (Igrejas) de várias qualidades.

Mas se você pretende ser um iniciado, ou melhor um sorveteiro (também serve para um crítico de sorvete), o sarrafo sobe. Espera-se que saiba não só degustar o sorvete, mas também que entenda seu modo de preparo, passo a passo, em especial os pontos críticos para obtenção da melhor qualidade possível, bem como os melhores fornecedores de matéria-prima, as formas de avaliação do produto final, o método correto de armazenar e de verificar temperatura, entre diversas outras questões.

Observe que frequentar as horas de aula do curso de sorveteiro profissional e empurrar o “curso com a barriga” pode até ser suficiente para lhe conferir um certificado, mesmo em uma escola de grande reputação, mas daí a conseguir de fato produzir um bom sorvete e saber operar essa arte-ciência há uma distância enorme.

Então veja… Não se trata de a via iniciática ser um caminho aristocrático ou apenas voltado para uma elite intelectualizada. Longe disso. Ler, refletir, amadurecer e repensar sobre princípios thelêmicos e a adequação de si ao que propõe para si e para o mundo é o mínimo necessário para uma verdadeira religiosidade, seja ligada a Thelema ou não.

A O.T.O. é uma ordem que reúne arcanos e mistérios das mais variadas tradições e expõe ao iniciado, ao longo de sua senda, a Verdade presente desde os primórdios da Humanidade, a qual nominamos publicamente pelo Nome de IAO, independentemente se neste ou em outro Aeon.

Ou seja, O Supremo Deus é Imutável mesmo na mudança, assim como as doze casas celestiais no percurso do Sol. Esse Supremo Deus é, portanto, um princípio espiritual sempiterno e que enlaça a todas as Estrelas que iluminam os céus da Terra. Entre essas estrelas há as mais sombrias, mulheres e homens, ou o povo; há também as vicejantes e despertas, as Mulheres e Homens.

O que as diferenciam com relação à consciência é apenas a forma de apreensão dessa Verdade. Ao passo que as massas não iniciadas a enxergam por meio de várias camadas interpretativas de terceiros; os despertos aprendem os meios de acessá-la diretamente, pois conseguiram compreender a vivência na série dramática dos mistérios da Vida – jornada iniciática na Ordem.

Assim, na O.T.O. é Aquela Verdade a semente latente, a Marca da Iniciação, que é lançada por aquele que chamamos de Pai (e Paz), quem se eleva na escuridão da morte com a Vida latente no junco. Somente a Tolerância poderia ser a Mãe de tamanha aberração (iniciando) que busca gestação com o sinal sinistro na testa, antes mesmo de encarnar.

O Iniciado é inconformado com a natureza posta. Não aceita pura e simplesmente o caminho que o destino lhe ofertou. Ele quer operar milagres e compreender o Mistério da Existência. Então, por ato de ousadia (e sedição), desafia a natureza, reclama uma nova Vida e aprende o Mistério da Superação da Morte, anunciado no Aeon da Criança Coroada e Conquistadora.

Esse trajeto não é feito por qualquer idiota que vê uma pérola legítima e pensa ser bijuteria barata. Afinal, a oferta de bijuterias vagabundas (ou sorvete com aroma de pistache) nunca esteve tão em alta como hoje nos fóruns de discussão, canais virtuais e redes sociais.

Claramente é importante que haja construção de Thelema pós-Crowley, com produção de textos, cerimônias e rituais. No entanto, o que muito se vê é o solapamento de toda a base thelêmica apenas para atender a desejos rasos de “magistas” de fim de semana ou para satisfazer a ansiedade por pragmatismo mágicko (McMacumba). Pior… o pouco de resultado que obtêm é utilizado para propagandear o próprio trabalho e iniciar uma espécie de “teologia da prosperidade” do Novo Aeon.

Antes de construir algo novo, já ao menos se consegue entender o que já existe? Já se pratica o que sustenta e defende? A pós-verdade nos incita, por óbvio, a checar tudo o que vemos e ouvimos saber, tudo isso sem o próprio raciocínio crítico, sem autonomia intelectual, sempre por meio de terceiros. Mas também instiga ao perigoso “ver todos os ângulos”, “ouvir a todos”, “tentar de tudo”, etc. Assim como ensinam os princípios da O.T.O., a Verdade da via religiosae sempre está escancarada; num plano de rotina diária, muitos apenas querem “verdades” que sabem falsas, mas fáceis, prontas, pret-à-porter, com a mesma mentalidade do neo-pentecostalismo pop que tanto se critica. Qual o nome disso? Hipocrisia.

Muitos sacerdotes osirianos assumem ser uma espécie de figura mítica de sapiência máxima para ditar (ou repetir de terceiros “hierarquicamente superiores”) as regras dos livros sagrados da religião que perfilham. Porém, isso só faz sentido se houver uma congregação que escolha escolheu a leitura de segunda mão, com conteúdo semântico previamente filtrado e interpretado.

Em Liber Oz está proclamado que “não há deus senão o Homem”. Na Hermenêutica Thelêmica, Hermes não é uma entidade externa, intérprete das mensagens dos deuses, mas é ínsito à Divindade que habita em toda mulher e todo homem. Portanto, parece bem fraco o Homem-deus desprovido de pensamento crítico, deslocado na narrativa histórica do próprio mito e que não consegue elaborar um pensamento original, ou mesmo uma interpretação própria dos múltiplos textos (escritos e orais, individuais e sociais) que lhe atravessam diuturnamente.

Atirar para todo lado, sem firmar-se num caminho, ouvindo o que tudo e todos têm a dizer, o que os inúmeros livros e .pdfs falam, é apenas preferir a interpretação pronta dos outros à dolorosa, lenta e custosa autonomia intelectual e mágicka. Pior que fraqueza, isso é sinal de desequilíbrio!

Hoje não faltam cursos, oficinas, instruções pagas et caterva para lotar qualquer “estudante” de ocultismo com informações razoáveis, com as quais ele sequer sabe por onde começar. Quanto maior o vômito de informações, mais sábio é o mestre, maior sua remuneração. 

Também não faltam pessoas carentes, desejosas de reconhecimento, geralmente com alguma frustração pessoal a qual negam aceitar e que fetichizam um eu ideal, despersonalizado, poderoso e cheio de títulos pomposos, como certificados de “cursos” e graus iniciáticos das mais variadas ordens.

Quer se iniciar? Venha!

Espero que, ao chegar, tenha estudado o suficiente para entender a metáfora de que, para engendrar vida, é necessário o dom do Espírito Santo. Até que isso ocorra, múltiplos fatores impeditivos podem atuar: métodos anticonceptivos, ação de substâncias anafrodisíacas, impotência, infertilidade, entre tantos outros.

Depois disso, antes do Nascimento, há possibilidade de abortos. Porém, depois do Nascer, se necessário for, a Mãe Terrível mostrará a seus filhos despertos que suas estrelas candentes foram lançadas num abismo de escuridão eterna, maior que qualquer luz. Então, nesse negrume, a Mãe consome o filho imprestável e o lança para a reciclagem das reencarnações.

Agora, então, para um tempo e responde a seguinte pergunta: quando você vai tomar sorvete, você sabe como faz para acertar o caminho da boca?