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Accendat in nobis Therion ignem sui amoris et flammam in aeternae caritatis!

Caridade é o atributo daquilo que é caro – do latim carus –, de alta estima, valioso. Dizer que alguém lhe é caro significa dizer que essa pessoa é preciosa em sua vida.

“Dar ao outro o que lhe é caro” é uma leitura possível para caridade, mas, ao se despir da moralidade cristista, não parece ser a melhor nem a mais provável. Em verdade, é apenas rasa.

Então, a “caridade thelêmica” trata-se de uma ética “contemplativa”, objetivista, ou de uma apologia ao egoísmo? Talvez, se examinado por uma perspectiva grosseira. Isso porque a dualidade é falsa, uma ilusão.

O exercício da caridade implica nos tornamos caros, preciosos, à Humanidade Divina, bem como enxergar o valor da existência do outro, do similar e do diferente, e, até mesmo, do antagonista.

Tendo isso em mente e a proclamação do Aeon de Hórus, o mandamento osiriano de caridade foi parcialmente derrogado pela ordem máxima de “Faze o que tu queres será o todo da Lei” e ressignificado por “Amor é a lei, amor sob Vontade” – contudo, não se esqueça de que Thelema (Vontade) = Ágape (Amor).:

“Amarás, pois, ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento, e de todas as tuas forças; este é o primeiro mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não há outro mandamento maior do que estes.” (Marcos 12:30,31)

Comecemos pela caridade, para depois tratar da Caridade.

A “caridade” como ajuda também existe no universo thelêmico. Não se trata de sair distribuindo coisas e praticando salvacionismos. Consiste no exercício de, após enxergar a caridade do outro, isto é, reconhecer o valor da outra Estrela, auxiliá-la a retomar sua órbita, se necessário for.

Thelema não é a lei da selva, a corrida de sobrevivência do que é mais apto no plano material, principalmente se levarmos em conta situações em que as condições ambientais oprimem o livre manifestar da Mulher e do Homem.

Se o que lhe garante segurança na posição que ocupa (profissional, financeira, emocional e espiritual) é a injustiça histórica e social que assola os demais, você não é o Leão cujo rugir assombra os cordeirinhos – dóceis por opção –, mas sim um covarde que se aproveita da fraqueza dos outros, um soldado que não ousa lutar. Um ser patético que consente com a opressão e a tirania das massas e do Estado, porque isso lhe convém. Observe se, a pretexto de criticar os valores cristãos disseminados pelo catolicismo romano, você não acabou os substituindo por um calvinismo barato.

Pois bem, toda e qualquer ajuda a qualquer pessoa deve ser prestada com discrição, sem lesar o orgulho daquele que é auxiliado (AL, II:77), e de modo que o alívio seja o mais permanente possível. “Faze o bem aos outros apenas por fazer, não por recompensa, não pela gratidão deles, não por simpatia. Se tu és generoso, não desejarás que teus ouvidos sejam agraciados por expressões de gratidão.” (Liber XXX, 11).

Lembre-se de que “A aflição do outro pode ser aliviada; mas sempre com a ideia positiva e nobre de fazer manifestar a perfeição do Universo.” (Dever).

Num sentido espiritual, não é falso dizer que todas as conquistas e poderes do Mulher-Deusa e do Homem-Deus são dons do Espírito Santo, o qual é aquela semente – semen – de que todos compartilhamos, o maná de que provém o sustento da divindade humana.

Na Árvore da Vida, ao se examinar o desenvolvimento espiritual através das Sephiroth, nota-se “múltiplos dons do Espírito Santo”: o Aspirante tem a visão do Sagrado Anjo Guardião, o que o incentiva em sua jornada (Malkuth); domina o obscuro caminho de Tau e se submete às terríveis maldições e processos de morte que envolve o ato de Nascer e de se apresentar em manifestação no Astral (32º caminho, ת); explora sua natureza sombria, escrutinando os variados espíritos e demônios que nele coabitam e constrói a Pirâmide de Fogo onde clama à Coroa desde as profundezas da Malkuth (31º caminho, ש); lida com a memória mágicka, bem como aprende a lidar com as obras de feitiçaria e com arte do Ifá (29º caminho, ק); formula um verdadeiro portão para Yetzirah, onde vislumbra a Maquinaria do Universo (Yesod); açula a Kundalini por variados métodos e descobre as bençãos mercuriais (30º caminho, ר); vibra com o Phallus Divino até as dimensões celestiais (Hod); opera marcialmente sobre as ações internas e externas, lançando luz mercurial sobre a escuridão que reside nas moradas sombrias, pois abrigadas do Sol (27º caminho, פ); consagra tudo com que se envolve, tornando o próprio mundo o templo em que magick opera (28º caminho, ע).

Mas se não começar a abandonar os limites do Intelecto e avançar na arte devocional – Bhakti Yoga, “amarás ao Senhor teu Deus” –, o Iniciado não se estabelece firmemente em Netzach e, assim, permanece com seus dons, mas não progride para o conhecimento e conversação com o Sagrado Anjo Guardião, isto é, permanece morto com seu ego grosseiro, sem conhecer a Vida que habita em seu mais Alto Eu (R+C, o Adeptado). “Estes estão mortos, esses camaradas; eles não sentem.” (AL, II:18).

É pela prática devocional que se acende o Fogo de caritatis, Qadosh, a Serpente que ascende em fulgor, volatilizando a Alma, como um incenso, até Nossa Senhora Nuit, onde os beijos d’Ela percorrem todo o corpo num completo dissolver orgástico. “Então no poder do Leão eu formulei a mim mesmo aquele fogo santo e informe, Qadosh, que se lançou e flamejou pelas profundezas do Universo” (Liber DCCCXIII, VII:0).

Portanto, o primeiro efeito de eternae caritatis é causar Vida Espiritual. A caritatis apenas se efetiva com a descoberta e o exercício da Verdadeira Vontade, em plena devoção. Tornamo‑nos carus ao elaborar nossa Safira Estrela, polindo-a e lustrando-a de modo que seu brilho ilumine ainda mais intensamente o Céu de Nuit.

A Luz que irradia d’Aquele Sol Secreto é justamente a que faz dilatar e movimentar o frio e úmido óleo no mais íntimo, cujo gotejar atiça o Fogo de nossos corações, o núcleo da Vida. Quanto mais fogo geramos no núcleo estelar, mais nossa Estrela resplandece no Universo, e essa Luz gerada não só nos guia, mas também ilumina as órbitas próximas.

Em termos de caridade, isso quer dizer que cedemos o excesso de Luz para os que tem dificuldade de se localizarem no próprio caminho e de atear a própria chama? Óbvio que não. “Não dou esmolas. Não sou pobre o bastante para isso.” (“Assim Falou Zaratustra”, de Santo Friedrich Nietzsche).

O Sol não dá aos seres o que lhe sobra, o Sol simplesmente é. De mesma forma, não produzimos Luz para os outros, ela é consequência do Evento de Ser, um produto de nossa própria fórmula mágicka colocada em constante movimento e execução; trata-se da energia liberada pela reação da operação de Amor sob Vontade.

É este estado ardente e reluzente de eterna Caridade a que todos devem aspirar, a Liberdade do fluir da libido, que incita a inércia do movimento da Vontade, a completa abertura de si para “Aquele que vai”.

Pela transpiração que provém desse frenesi de êxtase com as carícias de Hadit – “o verme que não morre, e o fogo que não se apaga” (Marcos, 9:44,46,48) –, o Sal da Terra é produzido e, por meio dele, haverá “paz uns com os outros” e o sacrifício será preparado.

Foi aquele de Nome Yeheshua (יהשוה שם, o Místico Solar 666), aka Jesus, que disse: “Não pensem que vim trazer paz à terra; não vim trazer paz, mas espada” (Mateus 10:34);  “Vim lançar fogo na terra; e que mais quero, se ele já está aceso?” (Lucas, 12:49); “Porque cada um será salgado com fogo, e cada sacrifício será salgado com sal.” (Marcos, 9:49).

Se não reconhecermos o quão carus é o sal que produzimos, dificilmente entenderemos o valor do sal das Estrelas-irmãs. Assim, quando nos ocupamos de julgar a qualidade do sal do outro, apenas tentamos disfarçar a miséria do nosso próprio trabalho.

“Quem ama seu pai ou sua mãe mais do que a mim, não é digno de mim; quem ama seu filho ou sua filha mais do que a mim, não é digno de mim; e aquele que não toma a sua cruz e não me segue, não é digno de mim. O que acha a sua vida, perdê-la-á; mas o que perde a sua vida por minha causa, achá-la-á”. (Mateus, 10:37-39).

A Paz não preexiste em ser algum – existência presume dualidade; “Vocês pensam que vim trazer paz à terra? Não, eu lhes digo. Pelo contrário, vim trazer divisão!” (Lucas 12:51).

A Paz é conquistada pela ação da Espada e se assenta com a União (ato de Amor) ordenada pela Baqueta. Ela é Fogo de Chaos, do qual “nós somos criados e para o qual nós retornaremos” (Liber XV), pois “Chaos é Paz” (Liber CDXVIII, 4º Aethry), a “serpente que devora o espírito do homem com o desejo da luz” (Liber CDXVIII, 14º Aethyr).

O estado de aeternae caritatis é, de algum modo, redundante. Se a paz não for duradoura, não houve realmente Caridade, pois a contínua Caridade é método certo de consecução da Paz, aquela que resulta do Equilíbrio das Sombras da Noite (Lua em Libra, Dois de Espadas). Se o coração se inflama brevemente, não é a ação da Luz de Therion; é algo mais tosco, como uma defesa do ego ou endocardite mesmo.

Há outra faceta do Estado de Caridade. Ela incita o desejo e o sexo, “o amor ao próximo” – não ao distante, embora distância seja ilusão –, isto é, ao que naturalmente nos atrai. Este é um ato mágicko sublime, o ponto máximo do ritual de Criação, a fricção que leva ao aquecer dos óleos que inevitavelmente excita o Espírito Santo que neles se encontra. Se, no instante último, as mentes estiverem tomadas pela Consciência Totipotente, nasce o Filho de Deuses Vivos.

Então, somente por um ato de Caridade, a criança, ser de mais alto valor, é, então, sacrificada – sacrificar vem do latim sacer (sagrado) + facere (fazer), “fazer sagrado”, “tornar sagrado”. A Língua de Fogo do Espírito Santo toca a língua de carne, e o Espírito habita na Matéria viva.

“Tu me trouxeste em grande deleite. Tu me deste da Tua carne para comer e do Teu sangue para uma oferenda de embriaguez.” (Liber LXV, III:38).

Netuno (Chokmah, Logos, CHAOS) lança seu precioso Tridente (ש) ao infinito Mar (Binah), e a Lua (Atu XVIII) agita as águas e o instinto dos Peixes (♓︎) de se multiplicarem – אמא se torna איםא. O Pescador logo aparece para lançar sua linha e anzol ao Mar – “pescador de almas”, צ. No prato, a pesca é devotada a Deus e, em seguida, consumida pela Família.

Autor: Frater אל-אמא-יה