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Tendemos a rotular tudo, e não é algo que vem das últimas décadas para cá, como diriam nossos avós. A tendência de rótulo é ínsita à linguagem humana, pois essa ânsia de manifestação de poder, qualquer que seja sua natureza, opera-se por meio da linguagem. Como controlar algo que não se consegue nominar?

Lá em Gênesis, YHVH Elohim (יהוה אלהים) – nome atribuído a Binah, Saturno, Senhor da Forma – deu a missão à Adão de nomear todas as coisas por ele criadas. Aquilo que não tem nome é incontrolável, margeia à realidade sem nela se ancorar. É uma psicose sem o psicótico.

De adama [terra, solo], YHVH Elohim formou o animal do campo e a ave dos céus, e os trouxe à Adam, para os nomear; e tudo o que Adam chamou a todo ser vivente, isso foi o seu nome. (Gên. II:19, tradução livre).

Quando a coisa abstrata é nominada, ainda que por uma expressão genérica, lhe é atribuída uma “forma‑pensamento” (símbolo); cria-se o significante para algo que, em verdade, já possui um significado. Não é comum à natureza humana tolerar símbolos sem nomenclatura.

No cristismo romano, há relatos históricos de que celebrantes do rito de exorcismo, conforme orientações de manuais da época, incitava o demônio que atormentava o fiel a que lhe dissesse seu nome. Isso é reiteradamente explorado em filmes de terror: se o sacerdote descobrir o nome do demônio, amplia-se sobremaneira o poder sobre a entidade. Não por menos… Afinal, como lidar com forças desconhecidas, sem limites semânticos?

Essa força que resiste à constituição de um símbolo é, de fato, diabólica. Este é o Diabo: ele separa, procria, desenvolve, quebra paradigmas, confunde, atordoa mentes, possibilita devires onde tudo é uniforme, escancara a possiblidade de progresso quando tudo parece estar parado. É a agulha que espeta a bunda de Deus – leia-se Homem-Deus ­– para romper a inércia da “naturalidade” das coisas, obrigando-o a continuamente nomear símbolos e simbolizar para controlar.

Então, quando surge algo que não está na “lista de Adão”; quando se ultrapassa abruptamente os limites léxicos preexistentes; quando as pulsões de vida criam continuamente múltiplos devires, destruindo o sujeito-produto standard do Velho Æon, estão em ação as forças diabólicas.

Nesse ponto, é preciso tecer alguns comentários sobre a etimologia dessas palavras. Símbolo tem como étimo mediato sym (σύν, junto) + ballein (βάλλειν, lançar), ou seja, “lançar junto, associar”. Diabolo ou diabo vem do grego διά + βολος, cuja transliteração é dia + bolos (origem em βάλλειν, lançar); assim possui, entre seus significados etimológicos, entre ou através lançar; “lançar separado, dissociar”.

A atuação das forças simbólicas, de União, se opera apenas sob Vontade. Essa operação deve ser a regra, afinal “amor é a lei”. No entanto, sem prévia separação, não há União. Sem ação das forças diabólicas, não há operação simbólica a ser realizada.

Aquele que se inicia, deixa o pro-fano (pro + fanus, ante + templo; antessala do templo ou o estado de diante do templo) e é legitimado a adentrar o Templo. Lá ele proclama seu nome, diz o logos que, com seu estado de maturidade espiritual, interpreta de si e para si, deixando a facilidade do silêncio que a tudo integrava. Tudo isso para que, eventualmente no futuro, possa legitimar a si mesmo, por meio de seu corpo e mente, a encontrar sua Fala no Silêncio, a Criação integrativa, uma pulsão de vida infinita num átimo saturnino.

A construção do motto, para o iniciando, é autopolêmica, delimitadora e diabólica; envolve um trade-off de economia espiritual, pois retrata a persecução do caminho da Vontade. É benção do exercício da liberdade; também é maldição, ou maldicção.

Prometeu trouxe fogo dos céus. A Serpente instigou Eva a comer da “maçã” da Árvore do Conhecimento. Seth prendeu e desmembrou Osíris. Zeus destituiu Cronos, seu pai, do trono dos deuses. Sísifo enganou a Tânato e Hades. Xangô conspirou contra Osanyin para compartilhar as insabas.

Vários feitos dos deuses e dos homens somente puderam ter sua relevância porque foram atos contrários à normalidade sistêmica, ou seja, verdadeiros atos que excediam a natureza das coisas postas. Então, qual é o seu ato de rebeldia? Qual é o excesso que pretende opor ao sistema consolidado?

Não se trata apenas de macropolítica, mas principalmente daquela política alquímica, aquela guerra interior incessante que se opera no centro do Ser, que lhe mostra diuturnamente traços da Vontade. Mas, como essa “polemologia linguística” se opera no Æon de Hórus?

A celebração pura das forças naturais ficou no Æon de Ísis. A força castradora, delimitadora, repressora pela culpa (pecado) e histérica como a das cartas paulinas se torna obsoleta com a queda do Æon de Osíris, dando lugar a uma energia marcial, impulsiva e criadora.

As forças diabólicas do Æon de Hórus escancaram a fragmentação da Verdade. Ela se encontra no efêmero ponto de estofo dinâmico, resultante de um nó triplo: real‑imaginário-simbólico. A verdade não é mais a “palavra de Deus”; ou pelo menos, não é mais a palavra de um Deus mítico, que manda entregar mandamentos em tabuletas.

A Verdade é fluida, viva, dinâmica e subjetiva. Sim, subjetiva. A Verdade é como Alice – da obra de Lewis Carroll –, que alterna entre realidades com a mesma facilidade com que Kore e Perséfone alternam entre mundos.

Embora a Verdade seja fragmentária, fluida, instantânea e dinâmica, ela não é ilusória. A ilusão consiste no real-simbólico-imaginário desconectados, ensimesmados. Os fragmentos de Verdade integrados formam a Vontade, cujo símbolo clássico é uma Espada. Daí surge um aparente paradoxo: se a Vontade é causa e consequência de União; como pode ser a Espada símbolo de Thelema, pois é uma arma que corta, parte e divide, isto é, uma arma diabólica?

A Espada de Thelema bane e elimina aquilo que obstrui a órbita da Vontade, e geralmente os obstáculos não são externos ao indivíduo. Esse método marcial envolve cortar, separar, diabolizar. Assim a Espada de Thelema é também uma arma sacrificial e, de fato, vários Sacrifícios são feitos pelo thelemita.

A Separação está na União, assim como a Morte está na Vida. Nosso Sacrifício compõe a existência e abraça o antagonismo dor-prazer, mas não o sofrimento da culpa. A Cruz do Sofrimento dá lugar à Cruz da Vida. A típica imolação do cordeiro dá lugar a um orgasmo de luz, que redime o bem e o mal.

Autoproclamar um motto é também um ato de rebeldia. Per se, é diabólico, porque o indivíduo pretende conseguir invocar a si mesmo e se individualizar dos demais. Ele se excede do mundo natural e dá vida a uma persona, projetando nela o que seu estágio de desenvolvimento espiritual lhe permite apreender sobre a Vontade.

Não é um nome atribuído pelos pais, mas escolhido, pensado, refletido. É o primeiro ato do iniciado, que também o “separa” do profano.

É um ato corajoso, porque, por meio dele, o iniciado nomeia sua Espada de Thelema, e, por conseguinte, coloca em movimento toda uma corrente de energia física, psíquica e espiritual, atraindo consigo o explícito e o implícito no nome. Com o nome, a Espada ganha corpo, tamanho, peso, afiadura, estilo, vantagens e fraquezas…

Trata-se da primeira vez que o sujeito se depara, em si, com a ideia de que o Divino possui várias faces, pois, ainda que o nome profano e o motto possam inicialmente objetivar separar o profano e o iniciado, ambos compõem a mesma pessoa.

Isso se torna ainda mais evidente no Æon de Hórus, que desmantela a hipocrisia social e rasga as máscaras das pessoas de “bons costumes”. O Homem-Deus implica uma nova teologia de transcendência na imanência e de imanência na própria transcendência do Ser: o homem convoca o Divino a decair em perfeição e a se manifestar em carne; o sexo reassume sua sacralidade; toda mudança intencional da realidade é um ato de magia; o principal ritual de prosperidade profana é o trabalho; a morte é apenas uma das facetas da Vida; Papa Alexandre VI e Friedrich Nietzsche são Santos de Nossa Igreja; não há restrição para vivenciar a própria vida (nem mesmo a  própria morte).

Como a linguagem é arbitrária, o corpo que abriga a persona criada, nominada e invocada, constantemente ressignifica o motto, e é por ele ressignificado. O processo simbólico do motto é contínuo e, quando se chega a um ponto em que não há mais elasticidade linguística para satisfazer a própria evolução, ou há limitações subjetivas para o processo simbólico, o iniciado é livre para atribuir-se novo significante.

As forças diabólicas se fazem necessárias e são invocadas quando as simbólicas não mais dão conta de sustentar a autointegração.

Então surge uma outra questão: como é possível que um ser ocupante de um corpo físico, num mundo cuja linguagem é tão fluida, descubra, proclame e faça cumprir sua Vontade? O que Tu Queres? O fogo queima, a água dilui, a impressora imprime, o leão ruge, a tela mostra, os dentes caninos rasgam… Qual é o Teu Verbo? Como Tu causas mudanças no mundo?

Assim, a Vontade pode ser interpretada como o somatório de todas aquelas Verdades descobertas de si, formado por um ato de Amor, de União física e metafísica. O Amor é o método tanto de integração da Verdade de múltiplas dimensões temporais (a ilusão temporal ontem‑hoje-amanhã), quanto de identificação da Vontade. Paradoxalmente a Vontade não só é a força que irrompe a inércia para os atos de Amor, mas também os coordena.

Contudo, não se deve esquecer que o motto é um nome, um instrumento de comunicação para individualizar os Homens-Deuses que se interagem no Olimpo terrestre.

Descobrir a Vontade é individualizar-se integrando – até mesmo o ato de se isolar, numa visão panorâmica, não quer dizer deixar de se integrar. Ou melhor, a descoberta da Vontade é a assunção da trajetória em sua órbita Estelar num conjunto sistematizado de outros corpos celestes que interagem por uma força gravitacional, formando diversas galáxias, matéria e antimatéria, buracos negros, etc., mas todos, com suas harmonias e antagonismos, insertos no mesmo Corpo, que chamamos de Universo, ou Nossa Senhora Nuit.

Então, o que Te move? Qual é o Teu motto? O que Te individualiza? Qual é o nome da Tua espada, ó guerreiro?

Autor: Frater אל-אמא-יה