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Como está evidenciado, o intuito é tratar o Feminino a partir da perspectiva Thelêmica. Corro o risco de no decorrer da exposição me tornar um foco de pestilência. Mas como falar sobre o feminino em Thelema sem de algum modo me inspirar no texto angular e fundamental que é o Liber AL vel Legis? Me encontro em uma encruzilhada, daquelas mais adoráveis, que desafia o coração e a mente, pois também arrisco em expor algumas associações sobre a Árvore da Vida Cabalística, um campo de estudo vasto onde minha experiência é incipiente. Então gostaria que a leitora considerasse que as reflexões que se seguem não são uma regra e que, como o título sugere, são algumas ideias, baseadas em estudos (e insights) que ainda estão em processo e em continuidade. Espero que estas ideias, apesar de não completamente originais, seja uma contribuição que possa se somar às já existentes discussões e concepções sobre o feminino em Thelema.

Mas antes que as nuances pestilentas possam surgir, é crucial nos lembrarmos do óbvio: o Sr. Aleister Crowley, este homem ambíguo, machista, poeta, patriarcal, feminino a seu modo e Besta, não passa de um homem que NÃO É, evidentemente, o autor de Liber AL! Friso esta questão para que, de certa forma, mulheres se encorajem a experimentar Thelema, pois seu texto angular é fruto de uma Sabedoria sobre-humana. Portanto, ainda que atualmente Thelema seja fortemente marcada pela presença de homens cisgênero, a eles não é exclusivo. E como pretendo demonstrar, esse sistema carrega em si muito do aspecto feminino.

Ainda assim é necessário, urgentemente, dar as devidas credibilidades e exaltação a Rose Edith Kelly, Ouarda – A Vidente. Sua atuação de gigantesca importância é eclipsada negativamente pela escrita de A. Crowley. Foi esta mulher quem habilmente se comunicou com Aiwass, o emissário do Novo Aeon[1] – ainda que sem as aclamadas formações místicas/ocultistas oficiais floreadas de patentes e títulos. É Rose Kelly quem indica os detalhes ritualísticos para a invocação a Hórus. Infelizmente não há registros feitos pela própria Vidente do Aeon e apenas nadamos nos escritos do Profeta, que parecem colocá-la como um objeto vazio de perspectiva, de poder, como um todo receptáculo incapaz de reflexão, o que de fato não é verdade, caso contrário a própria Rose não teria ajustado parte do Livro da Lei e informado todos os detalhes ritualísticos necessários para sua escritura. Afinal, não sabemos o quanto que Aleister Crowley omitiu ou se apropriou das falas de Rose Kelly, uma atitude, infelizmente, muito comum por parte dos homens no decorrer da história.

O esforço e reforço desta breve recolocação histórica, visando reconhecer que a gênese de Thelema dependeu diretamente da atuação ativa de Rose Edith Kelly, trata-se de uma primeira e óbvia perspectiva do feminino em Thelema: “e em sua mulher chamada a Mulher Escarlate está todo poder dado.” | Liber AL, I:15. Não há como ignorar, nesse sentido, que a mulher e o feminino são fontes de poder e de energia criadora:

Segundo uma das tradições indianas (no Tantra), existe uma Deusa (Devi) que está acima de todos os Deuses. Ela é chamada de Maha Devi (a Grande Deusa), ou Shakti (a Poderosa). Sua característica principal, como o seu próprio nome diz, é o Poder. Ela é ativa, dinâmica, é considerada como a energia que move todo o universo (inclusive os Devas). Em comparação com ela, os Devas são inertes, inativos, passivos. Nessa visão, temos um conceito exatamente oposto ao que se desenvolveu no ocidente (e em outros lugares, como a China), segundo o qual a energia ou atividade seria uma característica masculina e a receptividade ou passividade seria uma característica feminina. (…) [Os] Devas [Shiva, Brahma e Vishnu] são seres que só podem atuar no universo porque a Grande Deusa lhe empresta uma parte de seu Poder. Nenhum deles tem todo o poder da Shakti. A mitologia indiana tem também muitas histórias que mostram que os Devas não são tão poderosos quanto a Shakti. Em alguns mitos, um demônio (Asura) muito poderoso vence todos os Devas (masculinos) e eles vão então pedir ajuda à Grande Deusa, que assume uma de suas formas mais terríveis (como Durga ou Kali) e destrói todos os demônios. | Fonte: <https://www.shri-yoga-devi.org/shakti.html> Acessado em 07/2018.

Em uma das lendas de Shakti, os Devas Shiva, Brahma e Vishnu ficam perplexos às vésperas da criação do universo, sem saberem como proceder. Shakti assim os guia em uma visita ao universo que Ela havia criado. Eles então prestam homenagens a Shakti com muitos hinos e solicitam a Deusa que fossem iniciados em seu segredo para contribuírem no ciclo da criação, preservação e destruição. Shakti responde:

Não existe diferença nenhuma entre o Grande Deva (Purusha) e mim. É apenas para o benefício do universo que nós aparecemos como dois. Na ausência deste universo manifesto, não existe nem masculino, nem feminino, nem andrógino. Não existe nada neste mundo onde eu não esteja. Eu penetro em todas as substâncias, e tornando Purusha[2] o instrumento, eu realizo todas as ações. Ou sou o frescor da água, o calor do fogo, o brilho do Sol e também os raios suaves da Lua, que são apenas manifestações do meu poder. | Nitin Kumar. Do céu para o lar: as muitas lendas de Shakti. Pág. 05. (Grifo da autora).

Portanto, é através do símbolo do Útero, do Grande Caldeirão, por meio do Santo Graal, que podemos alcançar algum entendimento sobre o universo manifesto e a substância da existência que jorra seu elixir, meio pelo qual a vida, a morte e a eternidade se realizam. A fonte e sua substância, esse elixir, sendo o mênstruo ou o orgasmo, a criança ou a grande boca que engole o sol, sendo o portal do prazer ou da destruição, sendo a Terra toda doadora ou o Mar aniquilante em tempestade, sendo a obra da Shakti tomando como instrumento Purusha, sendo PAN ou BABALON, é um princípio de força cujo caráter é feminino.

Observem que é Nuit a figura primordial da cosmogonia Thelêmica, onde Hadit e Ra-Hoor-Khuit se conformam enquanto imagens arquetípicas ou forças que a completam compondo a Santa Trindade de Thelema. Nuit a tudo engloba, inclusive o seu oposto, fruto de sua vontade de existência, sua manifestação que é Hadit, queimando no coração de cada indivíduo: “Had! A Manifestação de Nuit!”, “Nu! O ocultar de Hadit.” | Liber AL, I:1 e II:1, respectivamente. Assim como uma mulher tem o poder de gerar mulheres e homens, Nuit gera autonomamente toda a existência, inclusive seu próprio contraponto e oposto, as galáxias e estrelas, sistemas planetários e os universos. É no primeiro capítulo de Liber AL, aquele em que a “fala” de Nuit é manifestada, onde o centro e coração da Lei de Thelema está promulgada – versículos 40 e 57.

Nuit, enquanto o infinito Cósmico, é o meio pelo qual o Ponto (Kheter) e a força projetiva (Chokmah) se expressam; é neste Espaço Infinito e de Estrelas Infinitas – um todo de grande mistério inclusive para a ciência contemporânea e que fascina a humanidade desde tempos mais remotos – e a partir dele, que toda a existência se conforma, sendo Binah-Babalon a “manifestação de Nuit em um plano inferior” (O Livro de Thoth; pág. 115). Rosa Leonor Pedro sintetizou bem: “Antes do Verbo Era o Útero”, autônomo. Antes da existência da força masculinizada projetiva existe o todo gerador cuja potência é de qualidade feminina.

Desta forma, Thelema pode ser vista como um todo filosófico / religioso de caráter primordialmente feminino, na medida em que Nuit se realiza enquanto conceito totalizador da existência. Se de um lado Babalon é uma manifestação menos sutil de Nuit, a mulher por sua vez, em especial a Mulher Escarlate, assume as mesmas potencialidades – cada qual em seu plano de existência e de manifestação – meio pelo qual todo o poder pode ser acessado, portal para a fonte inesgotável. Em última análise, tudo aquilo que surge na natureza enquanto ser capaz de gestar (ou ainda todo ser que busca alinhar-se com essa potência que a tudo penetra) tem (ou terá) uma relação direta com esse poder feminino todo criador, ainda que não seja exatamente o mesmo, mas sim um fractal, com pequenas variações.

Como está posto, este aspecto cósmico totalizador não é apenas próprio de Thelema a partir da imagem arquetípica de Nuit, e além de Shakti pode ser observado por meio da Deusa Kali:

Kali personifica os três aspectos do ato cósmico, que se revelam na criação, na preservação e na aniquilação. (…). O que define Kali e também o cosmos que Ela manifesta, é a fusão de contrários – não apenas como duas coisas que existem juntas, mas como dois aspectos essênciais [sic.] da unidade. Do útero, que é mais escuro do que os recessos mais pro-fundos [sic] do oceano, onde nenhum raio de luz jamais chega, surge a vida. Da mesma forma, das trevas nasce a luz brilhante, e quanto mais profunda a escuridão, mais brilhante essa luz. | Prof. P.C. Jain e Dr Daljeet; Kali. A mulher mais poderosa do universo. Págs. 1 e 2 (Grifo da autora).

Ainda que possamos perceber Thelema como um sistema de fortes relações solares/masculinas, é marcante a ideia de que este aspecto só pode existir na imensidão cósmica feminina. Por essa perspectiva, um rito básico como o Liber Resh vel Helios ganha significados muito mais ampliados: o Sol pode então ser percebido como um ponto de comunicação com as forças cósmicas femininas. Nuit é o TODO. O Cosmos é mulher. E em Thelema este feminino é poder inesgotável geracional e criativo. A expressão individual, enquanto um princípio masculino solar, é gerada apenas e através deste poder de manifestação Feminino Cósmico, autônomo, a contrapõe e complementa, forma sua unidade expansiva e paradoxalmente coletiva (um múltiplo de unidades), pois Ela a Tudo (PAN) Penetra e Nela Tudo (PAN) Contém: “Eu estou sobre vós e em vós” | Liber AL, I:13. A manifestação da unidade concentrada, a Individualidade-Hadit, é um “produto” ou está “dentro” da força feminina totalizadora.

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            Se de um lado o cosmos é a mais alta realidade do feminino como uma grande vulva estrelada pela qual o Sol se delicia em sua jornada, representado em Thelema por Nuit[3], o feminino pode ainda ser percebido por outros aspectos de relação direta com Thelema e proporei alguns deles aqui.

  1. O Feminino Venusiano

Não se trata apenas do planeta Vênus ou ainda das deusas conexas, como Ishtar ou Ahathoor, mas se refere principalmente à Lei do “amor sob vontade” que é a síntese que nos permite aprofundar o sentido de “Faze o que tu queres”. É a manifestação de Ágape o fruto da Vontade[4]. Vênus está em relação ao trunfo III, A Imperatriz, um arcano completamente feminino. Atribuído ao 14° caminho da Árvore da Vida que liga Chokmah e Binah, associa-se à letra hebraica Daleth cujo conceito é a anulação do “eu”, sendo o seu significado Uma Janela ou Porta.

Ainda assim, o símbolo alquímico venusiano é mais abrangente:

Na Árvore da Vida, Daleth é o caminho que conduz de Chokmah a Binah, unindo o Pai à Mãe. Daleth é um dos três caminhos que estão completamente acima do Abismo. Há, ademais, o símbolo alquímico de Vênus, o único dos símbolos planetários que abrange todas as Sephiroth da Árvore da Vida. A doutrina implícita é que a fórmula fundamental do universo é o Amor (o círculo toca as Sephiroth 1, 2, 4, 6, 5, 3; a cruz é formada por 6, 9, 10 e 7, 8). | O Livro de Thoth. Pág. 76. (Grifo da autora).[5]

O Feminino Venusiano é aquele poder que permite unir pares de opostos de diferentes maneiras, seja internamente ou não, e vai além: faz a um tipo de união dos diferentes aspectos da existência quando aplicamos o símbolo planetário a toda a Árvore da Vida. O Feminino Cósmico, Toda Penetrante, se divide e, para que sua unidade paradoxalmente em extensão e coletiva seja mantida, atua através do Amor:

“Pois estou dividida por causa do amor, pela chance de união.” | Liber AL, I:29.

“Não a laço que possa unir o dividido se não o amor.” | Liber AL, I:41.

A carta da A Imperatriz, considerada como A Porta do Céu, resume em sua iconografia princípios femininos universais, como por exemplo a água, as abelhas, o lótus de Isis, rosas, flor-de-lis, etc., todos representados no Tarot de Thoth, cujas aquarelas que dão vida aos arcanos foram feitas a partir sensibilidade da artista Frieda Harris (1877-1962) dotada de maestria artística inquestionável. Curioso é que, nesta carta, estão presentes todos os signos do zodíaco[6], reforçando uma certa ligação do Feminino Venusiano ao Feminino Cósmico, como uma cadeia de manifestação, ou um constante retorno à expressão feminina primordial. De uma ideia cósmica totalizadora, no contexto venusiano a partir de seu símbolo alquímico, este assume novo aspecto totalizador abrangendo por sua vez toda a Árvore da Vida.

Asphodel P. Long (1921-2005), teóloga formada pela Universidade de Londres e preocupada com uma visão feminista sobre a teologia, em seu artigo “Asherah, the Tree of Life and the Menorah: Continuity of a Goddess symbol in Judaism?” (1996), faz refinadas análises que perpassam estudos linguísticos e arqueológicos trabalhando (também) a ideia de a Árvore da Vida Cabalística ser em si, toda ela, uma representação completa do divino feminino nomeado como Asherah. Correlata a Ishtar e Qetesh, Asherah é dotada de epítetos como “Mãe de Todos os Deuses”, “Senhora do Regozijo Sexual”, “Senhora do Mar”, “Ela que Monta o Dragão” e era reconhecida como fonte de toda a prosperidade da terra e do povo, a fonte da vida em si. A autora sugere que antecedente ao judaísmo monoteísta masculino havia o reconhecimento da potência feminina que fornecia poder ao princípio masculino[7]. Sugiro a leitura do artigo para uma apreensão mais completa desses sentidos que não cabem de todo aqui, mas o fato é que, o estudo da Cabala, por muito tempo reservado aos homens, se encontra há algumas décadas disponível para todas e vale repensar como os símbolos e sentidos femininos se manifestam na Árvore da Vida. A própria palavra hebraica QBLH (Cabala) significa “recebimento” e receber algo implica certo grau de receptividade, uma faculdade comumente associada ao caráter feminino no pensamento ocidental.

            Em Thelema a Cabala é recorrentemente utilizada, sendo o próprio Liber AL um expoente de ajustes neste sistema: “Todas essas velhas letras do meu Livro são corretas, mas צ não é a estrela.” | Liber AL, I:57. Sobre isto Crowley escreve no Novo Comentário:

Tzaddi (צ) é a letra do O Imperador, o Trunfo IV, e Ele [a letra hebraica] é a Estrela, o Trunfo XVII. Aquário e Áries são, portanto, contrabalançados, girando sobre o eixo de Peixes, assim como, nos Trunfos VIII e XI, Leão e Libra fazem sobre Virgem. Esta última revelação torna nossas atribuições do Tarô sublimemente, perfeitamente, impecavelmente simétricas. O fato de fazê-lo é uma prova muito convincente da Sabedoria sobre-humana do autor deste livro, para aqueles que trabalharam durante anos, em vão, para elucidar os problemas do Tarô. “Todas estas velhas letras do meu Livro estão corretas”: nos diagramas da Árvore da Vida não há necessidade de mudar a posição das letras. São apenas as atribuições aos Trunfos do Tarô que devem ser corrigidas.

Há pouco tempo eu estava satisfeita com a ideia de que os Véus da Existência Ain, Ain Soph, Ain Soph Aur[8] estivessem relacionados a um princípio de força feminina autogeradora (Nuit) e que o conjunto da Árvore da Vida em si se conformasse também como uma potência feminina, baseando nos estudos de Asphodel P. Long, no símbolo alquímico venusiano e passagens de Liber AL. Acreditava, portanto, que não havia importância se a maioria das Sephiroth fossem associadas a arquétipos masculinos. No entanto vale lembrar que o círculo (O) é um símbolo feminino primordial, representante do cosmos, do útero, da yoni, assim como a cruz (+) é um símbolo masculino, o phallus primordial[9].

Então, recentemente, uma querida irmã da O.T.O. alertou para o fato de as Sephiroth serem em si um símbolo feminino! Senti em estado de epifania com esse abrir de olhos: como fui cega sobre esse fato! Ora, se o círculo enquanto forma geométrica é a primordial representação do feminino, logo parte significativa da experiência cabalística, onde nossa consciência salta de esfera em esfera, é um constante adentrar e sair em potências femininas ainda que a maioria das Sephiroth assumam aspectos masculinos. Na experiência cabalística entramos de útero em útero, de Sephiroth a Sephiroth, passamos de círculo em círculo, nascemos e morremos em potências cuja essência é primeiramente feminina.

No círculo todas as outras coisas se manifestam. É no círculo mágico que a Magista cria algo e é no círculo mágico onde as bruxas geram e elevam seu poder. É interessante pensar que o símbolo do Sol é formado por um ponto dentro de um círculo, enfatizando que sua existência dotada de força de individualidade e concentração se dá no espaço circular infinito e feminino. Processo similar ocorre com o símbolo da Terra (⊕): a cruz também indica que existe um ponto central e sugere o masculino e o feminino totalmente unidos na manifestação da matéria.

De maneira a resumir, o Feminino Venusiano é uma potência expressa tanto na Lei de Thelema (Amor é a lei, amor sob vontade) quanto no amor como fórmula fundamental do Universo, onde é possível realizar um tipo de união de pares ou sistemas aparentemente opostos. Sob a luz do símbolo alquímico venusiano, o feminino passa a abranger de toda a Árvore da Vida. Esta ideia é reforçada pela forma geométrica de suas Sephiroth ou através da imagem da antiga divindade Asherah, que desconstrói a concepção de um judaísmo gestado e desde sempre monoteísta masculino. E ainda vale lembrar um outro aspecto do Feminino Venusiano em Thelema, aquele representado no trunfo V, O Hierofante: “(…) ‘Que a mulher seja cingida com uma espada diante de mim’. Esta mulher representa Vênus como ela agora está neste novo Æon, não mais o mero veículo de seu correlativo masculino, mas armada e militante”. (Livro de Thoth; pág. 81). Isso sugere, mais uma vez, o reconhecimento da potência feminina como autônoma.

2. O Feminino Saturniano

O planeta Saturno, o grande maléfico para alguns astrólogos, terá suas qualidades femininas enfatizadas. Relacionado a Sephiroth Binah onde está localizada Babalon, encontramos aqui o aspecto da Grande Mãe, do Grande Mar e a referência mais direta ao Santo Graal e ao líquido amniótico. É em si o grande útero que, diferente da concepção imagética do Feminino Cósmico autônomo e autogerador, atua em comunhão com da energia projetiva de Chokmah. Kether (A Coroa) é um todo andrógeno, mas Binah e Chokmah assumem características mais evidentes enquanto a Grande Mãe e o Grande Pai[10].

O caráter do Feminino Saturniano é justamente aquele em que a vida manifestada se faz eterna e temporal. Está associado a mente inconsciente (feminino-saturno) em contraponto a mente consciente (masculina-solar). Uma das possibilidades de trabalho mágico com essa potência é através da interação entre inconsciente e consciente, onde o primeiro é trazido à tona, no processo de realização ou investigação da “consciência da continuidade da existência” | Liber AL, I: 26. Trata-se da expressão onipresente do Feminino Cósmico (inconsciente coletivo), manifestado em um plano inferior, na esfera Binah.

            Mas este é o entendimento da vida enquanto eterna, em uma jornada ascendente na Árvore Cabalística e, a severidade da forma que limita a vida em seu contraponto temporal, reflete o movimento descendente da Espada Flamejante:

Binah, a Grande Mãe, chamada às vezes de Marah, o Grande Mar, é, naturalmente, a Mãe de Toda Vida. Ela é útero arquetípico por meio do qual a vida vem à manifestação. Tudo que fornece uma força para servir a vida como um veículo provém dela. Devemos lembrar, contudo, que a vida conformada numa força, embora seja capaz de organizar-se e desenvolver-se, é muito menos livre do que era quando ilimitada (embora também desorganizada) em seu próprio plano. Incorporar-se numa forma é, por conseguinte, o início da morte da vida. É uma limitação a um encarceramento; uma sujeição a uma constrição. A forma limita a vida, aprisiona-a, mas, não obstante, permite-lhe organizar-se. Do ponto de vista da força livre, o encarceramento numa forma é extinção. A forma disciplina a força com uma severidade sem misericórdia. O espírito desencarnado é imortal; não há nada nele que possa envelhecer ou morrer. Mas o espírito encarnado vê a morte no horizonte tão logo o dia nasce. Podemos compreender, portanto, o quão terrível deve parecer a Grande Mãe quando aprisiona a força livre na disciplina da forma. Ela é a morte para a atividade dinâmica de Chokmah; a força Chokmah morre quando conflui para Binah. A forma é a disciplina da força; por conseguinte, é Binah a cabeça do Pilar da Severidade. | Dion Fortune. A Cabala Mística. Pág. 108.

            Binah, a Mãe Superna, se apresenta tanto como o êxtase e o Graal de toda a existência e da vida eterna, o útero fonte das almas, quanto a faceta da grande disciplinadora que prepara a vida para a matéria criando suas condições primárias, o molde primordial. O Feminino Saturniano “brinca” com nossas percepções sobre o tempo e sobre o que realmente pode ser ou vir a ser o significado da vida; se faz como a grande libertadora, Senhora da Vida Celestial (acima do Abismo) ao mesmo tempo em que é a constrição do aprisionamento na forma. De maneira prática implica que é sob os auspícios da Grande Mãe que a Magista se propõe à disciplina severa do trabalho mágico.

Logo abaixo da Sephiroth Binah está localizada Geburah. Marcial, ferrosa e associada a Ra-Hoor-Khuit, esta esfera se liga à Binah através do 18° Caminho atribuído a letra hebraica Cheth e ao trunfo VII, A Carruagem. Na iconografia desta carta o Santo Graal é carregado pelo ouriga. Cheth possui o valor 418, o número da palavra do Aeon ABRAHADABRA, o código da Grande Obra. Liber Cheth vel Vallum Abiegni (Liber CLVI -156) apresenta ensinamentos sobre o Segredo do Santo Graal de Nossa Senhora Babalon, a Mulher Escarlate, cujo mistério está além da vida, da morte (saturno – o temporal e eterno) e do próprio amor (Ágape). E por Ela estar além desses conceitos é capaz de abarca-los estando, portanto, intimamente ligada ao mais profundo Feminino Cósmico totalizador.

Ainda que possamos intelectualmente aplicar diferentes maneiras de perceber o feminino a partir de conceitos, interpretações e insights, essa dinâmica deve levar ou conectar-se, de alguma maneira, ao Absoluto Feminino que se caracteriza não apenas enquanto cósmico, totalizador, etc., mas cuja essência é um todo Continuum. São cadeias de relações que invariavelmente retornam a este princípio máximo, autônomo e autogerador.

Relembrando que Babalon é uma manifestação menos sutil de Nuit e que a mulher encarna um aspecto mais denso de Babalon, a dinâmica da Mulher Escarlate se encaixa no Feminino Saturniano[11] e pode ser vista nos seguintes contextos, a priori: a) uma representação de Babalon; b) as mulheres que atuaram em parceria com o Profeta do Aeon de Hórus, as mulheres reais e históricas; c) as mulheres que assumem para si essa característica e por meio de suas vontades buscam ser elas mesmas uma ponte direta com o poder autônomo, autogerador e contínuo, permitindo que este seja manifestado objetiva e conscientemente através dela.

A Mulher Escarlate trabalha diretamente com a força arquetípica de Ra-Hoor-Khuit, onde muitos dos elementos estão expressos no terceiro capítulo do Livro da Lei. Ra-Hoor-Khuit[12] é a Unidade Máxima Manifestada da Trindade Thelemica Nuit/Hadit/Ra-Hoor-Khuit e logo, uma ponte de conexão objetiva com Nuit-Babalon-Binah. Como uma divindade marcial, não rivaliza com o aspecto feminino do Novo Aeon, armado e militante, uma vez também, que o Amor em Thelema não se trata do amor romântico.

Em Liber XV (A Missa Gnóstica) a pessoa que assume o ofício da Sacerdotisa também assimila o aspecto da Mulher Escarlate. É a Sacerdotisa quem carrega e manipula a Espada e pelo “Poder do Ferro (…)” (elemento associado a Geburah) inicia o trabalho parturial de sua contrapartida, a pessoa que assume o ofício do Sacerdote, posicionada no Útero-Tumba (no inglês: Womb-Tomb). Para isso ela faz o sinal da Cruz, sugerindo a manifestação da individualidade. A entrada da Sacerdotisa no rito é marcada pelas “Saudações da Terra e do Céu”, ambos conceitos femininos, sendo o céu um meio de referenciar a Nuit e Babalon. A Sacerdotisa se veste com o cinto (um círculo) em que a espada (uma cruz)[13] está embainhada e este é um elemento simbólico material que coloca a Sacerdotisa enquanto Mulher Escarlate, reforçando qualidades marciais de Geburah e a ligação desta esfera com Binah (18º Caminho – Liber Cheth – 418 – ABRAHADABRA) e, evidentemente, remete ao símbolo alquímico venusiano.

A Virtude associada a Sephiroth Binah é o silêncio e este pode ser percebido como um estado de consciência ou ação mágico-ritualística. É um dos princípios que fundamenta as falas pontuais da Sacerdotisa no rito da Missa Gnóstica. O ofício da Sacerdotisa envolve um tipo processo criativo que, enquanto um ato gestacional, pode se fazer silencioso. Um outro momento de trabalho parturial é quando a Sacerdotisa profere a Lei de Thelema: “Não existe Lei além de faze o que tu queres.” | Liber AL, III:60. A criança que nasce desse silêncio profundo é o próprio Aeon, é Ra-Hoor-Khuit.

A fim de complementar o sentido da natureza do silêncio da Sacerdotisa aplicado no contexto da Missa Gnóstica, o ato de criação artística, por exemplo, é muito similar. Em conversas com diferentes artistas (e em minhas próprias experiências com a pintura), sempre chegamos a ideia de que o processo de produção artística nos conduz em algum momento a um estado de consciência profundo que silencia e emudece totalmente a mente, ao mesmo tempo em que, com uma maestria autônoma, é capaz de manifestar uma cadeia de organização criativa para que a obra seja concluída; como um estalo automático ou uma intuição que organiza rapidamente cores e ideias.

É um estado silencioso que acessa a uma espécie de local interno de contato com uma fonte inesgotável de vontade criativa. Ainda que a artista esteja em um local tumultuado ou com algum tipo de estímulo sonoro, tais atividades exteriores são anuladas quando esse momento de silêncio profundo emerge. Nesse sentido, o silêncio passa a ser um método-ação ou um termo capaz de provocar ou designar o movimento chave invisível em que a manifestação da vida ou de um tipo de energia se inicia.

É este o caráter do silêncio da Sacerdotisa: ele é sinônimo da relação deste espaço todo criativo interno que se conecta com o espaço Todo Penetrante (feminino, cósmico, absoluto). É a densidade saturniana, o silêncio das profundidades oceânicas, é o ponto mais profundo e escuro do útero (arquetípico e físico) de onde a vida surge. O som deste movimento não pode ser expresso pela palavra falada. A Sacerdotisa opera enquanto um ser que se habilita buscar esta fonte e para tal o processo demanda o silêncio enquanto fórmula e atividade mágica. A Sacerdotisa é, antes de tudo, Magista. Ela se propõe a permitir que através dela esse poder se manifeste[14], como um convite para o elevar da consciência além dos sentidos físicos. Ela, então, se regozija no Templo Secreto.

O Feminino Saturniano é a força que ceifa todas as percepções que consideramos como perfeitas ou confortáveis; é o feminino impiedoso sobre nossas emoções mais exaltadas, espirituais ou mundanas (bem explicitado em Liber 156). É a força oculta que expulsa o bebê de seu aconchego uterino; é o movimento oculto que libera a vermelha maré menstrual; é a eternidade e a temporalidade; é a Mãe Terrível que porta a espada que testará nossas intenções; é o desejo de sacrifício do próprio Sagrado Anjo Guardião: pois, a glória e luxúria Dela são altas e não se seduzem com pouco. Em um nível sociológico e cultural, esse aspecto representa a mulher devoradora, que se satisfaz ao ver a espada decepar sem misericórdia cabeça de João Batista; é o pensamento e o movimento feminista que causa amor e repulsa em muitas pessoas.

3. Feminino Lunar

O revivacionismo pagão e ocultista das últimas décadas com foco (comercial e capitalista) sobre a ideia do sagrado feminino têm, preponderantemente, se interessado pelo Feminino Lunar, devido às fortes relações do ciclo menstrual com as fases da lua. Mas, como temos visto, o feminino está para além dessa qualidade. No entanto, negligenciar o aspecto lunar seria um erro.

A primeira característica do Feminino Lunar é seu aspecto quadripartido: receptivo quando a lua é escura e crescente simbolizando a energia potencial, e ativo na lua cheia e minguante simbolizando a energia cinética. Por detrás das quatro fases é importante que reconheçamos que o Feminino Lunar é contínuo: esse aspecto apenas adota máscaras diferentes em momentos distintos, mas se mantém estável (Catherine Summers e Julian Vayne. A Deusa quadripartida. In._: Sementes da Magia; 1996). Perceber as marés lunares é um primeiro processo de entendimento deste feminino, que com o tempo deve ser transcendido. Na prática das chamadas mandalas lunares (ou diários lunares) temos o costume de observar as mudanças internas e externas de acordo com as quatro fases da lua, mas o verdadeiro trabalho é perceber o que permanece com o passar das lunações. É na permanência que o poder oculto desse feminino se desenvolve, sua essência que movimenta todas as quatro facetas, o eixo da roda.

Na Cabala a Lua está associada a nona Sephiroth Yesod que, antes de Malkuth, recebe toda a energia e poder das demais esferas, atuando enquanto uma ponte entre o mundo espiritual e o físico. O número nove reflete o período da gestação humana. Nesse contexto, a lua pode ser vista como o símbolo do útero menor, o lugar intermediário antes da manifestação na matéria. Em Yesod podemos acessar formações variadas oriundas das Sephiroth (o plano astral) e ainda se relaciona ao Espírito Santo:

Na medida em que se pode chamar o Segundo Triângulo [Chesed, Geburah e Tiphareth], com alguma propriedade, de Triângulo Ético, pode-se muito bem chamar o Terceiro Triângulo [Netzach, Hod e Yesod] de Triângulo Mágico; e, se atribuirmos a Kether a Esfera do Três em Um, a Unidade indivisa, e a Tiphareth a Esfera do Redentor ou Filho, poderíamos justificadamente referirmo-nos a Yesod como a Esfera do Espírito Santo, o lluminador. (…) Atribuem-se a Yesod todas as divindades de simbolismo lunar: a própria Luna; Hécate, que rege a Maria Negra; a Diana que governa os partos. A lua física, Yesod em Assiah, como diriam os cabalistas, com o seu ciclo de vinte e oito dias, corresponde ao ciclo reprodutivo da fêmea humana. Se o simbolismo da lua crescente fosse investigado em vários panteões, descobrir-se-ia que as divindades a ele associadas são predominantemente femininas; é interessante notar – corroborando com nossa atribuição do Espírito Santo a Yesod – que de acordo com MacGregor Mathers, o Espírito Santo é uma força feminina. Diz ele (Kabbalah Unveiled, p. 22): ‘Ouvimos com frequência que o Espírito Santo é Masculino. Mas a palavra Ruach, ‘Espírito’, é feminina, como se depreende da seguinte passagem da Sepher Yetzirah: Acha (feminino, não Achad, masculino) Ruach Elohim Chüm: o Um é ela, o Espírito do Elohim da Vida’. | Dion Fortune, A Cabala Mística. Págs.38-9.[15]

O 13° caminho que liga Kether e Tiphareth é atribuído a letra hebraica Gimel e ao segundo trunfo do Tarot, A Sacerdotisa, onde encontramos “a mais pura e mais exaltada concepção da Lua” (Livro de Thoth; pág. 73). Esta carta inegavelmente feminina e o caminho em que está relacionada é de significativa importância:

(…) para o Aspirante, ou melhor, para o Adepto que já está em Tiphareth, tendo alcançado o Conhecimento e Conversação do Sagrado Anjo Guardião, este é o caminho que leva para cima; e esta carta, em um sistema chamado de “A Princesa da Estrela Prateada”, simboliza o pensamento (melhor: a radiância inteligível) do Anjo. Em resumo, este é um símbolo da mais alta iniciação. | Livro de Thoth. Pág. 74. (Grifo da autora).

A citação acima sugere que parte do processo iniciático é, em última instância, uma experiência de caráter feminino. Para aprofundar ou intensificar o Conhecimento e Conversação com o Sagrado Anjo Guardião, é necessário que sejamos penetrados por uma força que sintetiza, abstrai ou resume a emanação andrógena de Kether, cuja essência é feminina se tomarmos o trunfo II como referência. O texto ainda apresenta:

A carta representa a forma mais espiritual de Ísis, a virgem eterna, a Ártemis dos gregos. Ela está trajada tão-somente do véu brilhante de luz. É importante para a alta iniciação considerar a Luz não como a perfeita manifestação do Espírito Eterno, mas, preferivelmente, como o véu que oculta este Espírito. Ela assim o faz sumamente efetiva devido ao seu brilho incomparavelmente deslumbrante. Assim ela é luz e o corpo de luz. Ela é a verdade atrás do véu de luz. Ela é a alma de luz. Sobre os joelhos dela está o arco de Ártemis, que é também um instrumento musical, pois ela é caçadora e caça por encantamento. Agora que se considere esta ideia como a partir de detrás do Véu de Luz, o terceiro Véu do nada original. Esta luz é o mênstruo da manifestação, a deusa Nuit, a possibilidade da Forma. Esta manifestação primeira e maximamente espiritual do feminino toma para si um correlativo masculino ao formular em si mesma qualquer ponto geométrico a partir do qual se contempla a possibilidade. Esta deusa virginal é então potencialmente a deusa da fertilidade. Ela é a ideia por trás de toda a forma; logo que a influência da tríade desce abaixo do Abismo ocorre a conclusão da ideia concreta. | Livro de Thoth. Págs. 73-4.

Aqui se abrem algumas nuances que podem fundamentar a nudez da Sacerdotisa em parte significativa do rito da Missa Gnóstica (além do próprio Liber AL conter esta pista): sua vestimenta é a luz espiritual manifestada no Templo. Não é a nudez em si que importa, e sim nossa capacidade de sermos penetrados por essa luz sutil e perceber aquilo que se encontra atrás do fino Véu de Luz Espiritual, o Espírito Eterno, Isis Desvelada. Assim a nudez não é, absolutamente, um artifício de exposição ou objetificação da pessoa oficiante, mas um artifício catártico e ao mesmo tempo sutil. Outra concepção é que, em Liber XV, a Sacerdotisa também representa o Sagrado Anjo Guardião e a Missa em si nos apresenta, dentre outras, a fórmula da Consecução e Conversação. O trecho acima também nos dá uma indicação sobre sentido de a Sacerdotisa ser, preferencialmente, Virgo Intacta (um estado de consciência, um Grau específico da O.T.O. e uma pessoa à serviço da Ordem) e, neste caso, a própria ideia de virgem se transforma no decorrer do tempo:

Las antiguas sacerdotisas lunares eran llamadas vírgenes. Virgen significaba soltera, que no pertenecía a hombre alguno, una mujer que era “una en sí misma”. La palabra misma proviene de otra latina que significa fuerza, poder, habilidad siendo posteriormente aplicada a los hombres, esto es, viril. Ishtar, Diana, Astarte, Isis… todas ellas fueron llamadas vírgenes, lo cual no se refería a su castidad sexual, sino más bien a su INDEPENDENCIA sexual, y de todos los héroes (míticos o históricos) de las grandes culturas del pasado se decía que fueron traídos a este mundo por madres vírgenes, a saber: Marduk, Gilgamesh, Budda, Osiris, Dionysus, Genghis Khan, Jesus. Se afrimaba que todos ellos eran hijos dela Gran Madre, de la Madre Original, la cual les proveía de su poder. Cuando los hebreos usaron la palabra en arameo significó soltera o mujer joven, de nuevo sin connotaciones a su castidad sexual. Fue más adelante, cuando los traductores cristianos no pudieron imaginar a la Virgen María como una mujer sexualmente independiente y, no hace falta decirlo, cambiaron el significado de virgen original por el de pura, casta, incorrupta. Cuando Juana de Arco (con su conexión con las brujas de los aquelarres) fue llamada La Pucelle -la soltera, la virgen – este término conservaba algo de su significado original pagano de mujer independiente y fuerte. | Fonte: Redes sociais da Artista Suzana Ruiz Blanche em citação ao livro de Monica Sjöö, The Great Cosmic Mother: Rediscovering the Religion of the Earth. Acessado em 03/2019.

            O Feminino Lunar é o espiritual das forças astrais de Yesod (o útero menor), o Espírito Santo e o espiritual sublime representado pela carta da A Sacerdotisa. É aquilo que permanece apesar das facetas (fases da Lua); é a imagem da virgem suprema, toda potencial de fertilidade e de energia geradora. É a radiância inteligível do Sagrado Anjo Guardião. De maneira a reforçar o caráter feminino do sistema Thelemico sob a perspectiva do Feminino Lunar, ainda sobre o trunfo II, A Sacerdotisa, A. Crowley cita uma passagem do Livro das Mentiras que resume a essência feminina como inerente da e na experiência iniciática:

A OSTRA

Os Irmãos da A.·.A.·. são um com a Mãe da Criança.

Os Muitos são adoráveis ao Um, como o Um o é para os Muitos.

Este é o Amor Destes; criação-parto é a Glória do Um; coito-dissolução é a Glória de Muitos.

O Todo, assim combinado com Estes, é Glória.

Nada está além da Glória.

O Homem delicia-se ao unir-se com a Mulher; a Mulher em parir uma Criança.

Os Irmãos da A.·.A.·. são Mulheres: os Aspirantes à A.·.A.·. são Homens. | (Grifo da autora).

4. Feminino Terroso

Não poderia deixar de abordar a Terra, ainda que o faça sumariamente. A Grande Mãe Matéria, a Rainha Malkuth, O Reino, A Natureza, tem sido um dos mais evidentes aspectos do feminino, ligado tanto a vida selvagem profundamente harmônica e auto equilibrada, quanto ao plantio disciplinado, ao esforço do trabalho. Este aspecto feminino é a força que alimenta e sustenta a humanidade, é o pão e o sal, é a imensidão natural misteriosa que se expressa em diversidade de seres, é a complexidade mais “baixa” da manifestação.

Tudo que na Terra vive temporalmente é o resultado direto da cadeia de manifestação que se inicia no Feminino Cósmico. É o resultado final da obra perfeita. Malkuth, a Sephiroth associada a Terra, ampara todas as emanações das outras esferas e seu aspecto é de força de sustentação. É Shekinah, a presença divina. E não podemos nos esquecer que “Kether é a Malkuth da Existência Negativa” (Dion Fortune, A Cabala Mística; pág. 27) e desta forma Kether também está em Malkuth. A Terra, seja como elemento, o chão que pisamos, o planeta que habitamos (Gaia) ou uma esfera cabalística, assume essas qualidades femininas do sustento da manifestação da vida objetiva, pois o feminino que gera autonomamente o seu oposto e igual e toda a vida, cria os meios de manter tudo o que Nela manifesta. Nosso próprio corpo, enquanto matéria veículo do espirito é um todo receptáculo feminino.

No Credo da Missa Gnóstica, Babalon por sua vez, além de ser oceano infinito e o útero gerador é também a Terra-Mãe: “E eu creio em uma Terra, a Mãe de todos nós, e em um Ventre no qual todos os Homens são gerados, e onde eles deverão descansar, Mistério do Mistério, em Seu nome BABALON”. Assim sendo,

BABALON, como a Grande Mãe, representa a MATÉRIA, palavra derivada da palavra latina para mãe (mater). Ela é a mãe física de cada um de nós, aquela que nos forneceu carne material para vestir nossos espíritos desnudos; Ela é a Mãe Arquetípica, o Grande Yoni, o Ventre de tudo o que vive através do fluxo de Sangue; Ela é o Grande Mar, o próprio Sangue Divino que encobre o mundo e que corre em nossas veias; ela é a Mãe Terra, o ventre de toda a vida que conhecemos | Soror Helena e Frater Apiryon. Estudos do Liber XV, A Missa Gnóstica. (Grifo da autora).

Assim como nas demais facetas aqui sugeridas, o princípio Feminino Terroso adota um aspecto totalizador, retornando a Babalon, ou contendo as forças de Kether e das demais esferas resumidas em si, enquanto feminino Malkuth.

***

As ideias do feminino em Thelema que aqui propus se fecham em cinco principais planos distintos interconectados: o Feminino Cósmico autogerador (Nuit); o Feminino Venusiano que une todas as aparentes oposições através do Amor (totalizando a Arvore da Vida Cabalística e a Lei do amor sob vontade); o Feminino Saturniano detentor das águas da vida, do líquido amniótico, onde o segredo da fórmula da forma está ocultado e que age silenciosamente sobre a vida eterna e temporal (Babalon-Binah); o Feminino Lunar como o espirito sublime, a luz espiritual, a radiância inteligível do Sagrado Anjo, o Espírito Santo, também permanente apesar da faceta quádrupla e ainda substância astral (Luna-Yesod); e o Feminino Terroso, Shekinah, a graça da presença divina, o sustento do sal e do pão, a experiência da matéria e dos sentidos (Babalon-Malkuth).

Por mais que seja tentador adentrar em mais perspectivas que possuem relações diretas com Thelema, acredito que a exposição ficaria demasiadamente longa. Mas não esqueçamos de ideias femininas como:

  • A Kundalini (uma Deusa): “Colocai as asas e despertai o esplendor enrodilhado dentro de vós.” | Liber Al, I:6.
  • Os Chakras: círculos.
  • Demais trunfos do Tarot, por exemplo:

XVII – A Estrela – Nuit;

XI – Volúpia – Babalon;

VIII – O Ajustamento – letra hebraica Lamed, um arcano feminino contraponto e complemento da carta andrógena 0 – O Louco – letra hebraica Aleph: Liber AL: Aleph/Lamed;

Demais arcanos, etc.

  • Cores: “Eu que sou toda prazer e púrpura, e embriaguez do mais íntimo sentido, vos desejo.” | Liber AL, I:61.
  • Aromas: “Meu incenso é de madeiras resinosas & gomas; e não há sangue aí: por causa do meu cabelo as árvores da Eternidade.” | Liber AL, I:59.
  • Números: “Eu sou Nuit, e minha palavra é seis e cinquenta.” | Liber Al, I:24; “Nada é uma chave secreta dessa lei. Sessenta e um os Judeus a chamam; Eu a chamo oito, oitenta, quatrocentos & dezoito.” | Liber AL, I:46; “Meu número é 11, como todos seus números que são de nós. | Liber AL, I:60.
  • Signos zodiacais, etc.

Liber NV é um excelente método para adentrar os sentidos mais profundos de Nuit e o entendimento mais sensível de Thelema. Também podemos ampliar essas perspectivas buscando compreender símbolos e conceitos tradicionalmente masculinos à maneira como percebemos e vivenciamos o feminino, de modo a nos aproximar desse princípio e transcender nossas concepções. E, considerando que a compreensão da Magista está associada a Taça (Babalon), assim como a Baqueta é a Vontade, concluo com a máxima:

Faze o que tu queres será o todo da Lei.

Amor é a lei, amor sob vontade.

Autora: Soror Lótus.


[1] A este respeito pode ser consultado o site: <https://thelemicunion.com/when-rose-kelly-heard-voices/> (Acessado em 12/2019), o Equinócio dos Deuses e demais escritos de A. Crowley.

[2] Dependendo da fonte ou do período histórico o significado do termo pode variar. Nos Upanixades (textos surgidos como comentários sobre os Vedas), o conceito Purusha significa a essência abstrata do espírito e o princípio universal que é eterno, indestrutível, sem forma e que em tudo penetra.

[3] Nos estudos iconográficos a posição de um elemento (imagem ou ícone) é balizar para que uma interpretação sobre determinado objeto artístico seja concebida. Neste caso, Nuit inserida na Estela da Revelação em um espaço alto e ladeador é sinal de sua significância e destaque, seja por uma perspectiva religiosa ou cultural e cosmogônica.

[4] Ver Liber II, A Mensagem de Mestre Therion.

[5] Além de Daleth acima do Abismo estão o 11° e 12° Caminhos, respectivamente O Louco-Aleph / Kether-Chokmah e O Mago –Bet / Kether-Binah. Ambas cartas do Tarot de características andrógenas. A base do triângulo acima do Abismo é, portanto, de qualidade feminina.

[6] Os símbolos zodiacais estão representados no cinto da figura feminina, cuja forma circular remete ao símbolo primordial feminino tradado adiante.

[7] Este artigo me conduziu à seguinte reflexão: é possível que se tenha perdido (talvez intencionalmente) alguma fórmula original similar ao tradicional Yod-He-Vav-He (Jeovah)? Asherah: Aleph-Shin-Resh-He Final.

[8] Ain: Luz Ilimitada 000 / Ain Soph: Ilimitado 00 / Ain Soph Aur: Nada 0. Reparem que os três primeiros versículos de Liber NV são numerados como 000, 00, 0. Também chamados Véus da Existência Negativa, conceito que no ocidente conforma qualidades femininas. O zero, cujo símbolo é um círculo, o Nada, é representativo de forças femininas.

[9] O símbolo alquímico venusiano apresenta o Círculo e a Cruz em relação, me levando a considerar que além de ser um símbolo que contém em si uma chave da fórmula da união alquímica realizada através do amor, também demonstra que o masculino é fruto do feminino, onde através do parto, o Círculo parece dar à luz a Cruz. Se tomarmos este símbolo como uma corruptela da Cruz Ansata, temos aqui uma perspectiva sobre a eternidade da vida. No Ritual do Pentagrama e outros, traçamos a Cruz (também) como uma afirmação de nossa individualidade (uma concepção masculina) aperfeiçoada a partir das forças que são invocadas, que são postas em relação ao Macrocosmo (uma concepção feminina). O feminino, assim, assume um caráter coletivisador, onde os muitos se manifestam, compondo sua paradoxal Unidade expansiva.

[10] Realizar uma digressão histórica que analise os momentos e as formas pelas quais se sucederam a subjugação ou o total apagamento da figura da Grande Mãe, para que fosse emergida uma concepção divina unicamente masculina, é um trabalho demasiadamente longo. No entanto, é inegável a existência de arquétipos femininos totalizadores como a já citada Asherah, Mãe de Todos os Deuses, ou ainda Shakti-Kali, a Manifestadora do Cosmos. Desta forma, não é totalmente ingênuo pensar que os Véus da Existência sejam dotados de um poder autogerador de caráter feminino. Ainda que a compreensão da própria Trindade Superna acima do Abismo seja um campo desapropriado para o exercício intelectual, pode parecer absurdo arriscar alguma concepção sobre os Véus da Existência, mas a ideia de este ser uma potência feminina me é muito convidativa. Há espécies na natureza cujas as fêmeas autogeram suas crias, mas este exercício comparativo para “provar” qualidades “espirituais” a partir de exemplos vivos na matéria pode ser uma grande armadilha.

[11] A mulher Escarlate também é “Vestida de Sol” referindo-se a Tiphareth. Uma mulher que realizou a Consecução e Conversação com o Sagrado Anjo Guardião.

[12] “O Nome do Deus varia de acordo com a sua maneira de se manifestar. Consequentemente, Ra-Hoor-Khut é Sua Manifestação como Emissor da Corrente que irradia de Boleskine; Ra-Hoor-Khuit é Sua Manifestação como Senhor do Aeon; Ra-Hoor-Khu é Sua Manifestação na Alma, o Khu do adorador. (Ele é, naturalmente, um Ipsissimus; todos os Deuses verdadeiros são.) Uma melhor compreensão destas variações do Seu nome vem apenas através da prática”. | Novo Comentário de Liber AL referente ao Capítulo III:11.

[13] A espada também é um símbolo do intelecto, associada ao Ar e a letra hebraica Vav.

[14] As invocações feitas pelos demais oficiantes são parte deste processo.

[15] Lembremos que a Pomba é um símbolo associado a Deusa Afrodite-Vênus e também do Espírito Santo.