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Por: Soror BABALON

*Artigo originalmente publicado na Revista Safira Estrela n°2 – Outono de 1996 e.v.

Os sentimentos provocados pela Iniciação são de várias naturezas e, às vezes, bem contraditórios. O Iniciado deverá deles extrair, buscando inclusive na aparente contradição, a verdade que o guiará através da difícil senda por ele escolhido. Alguns desses sentimentos são aqui apresentados, para a reflexão dos que desejam seguir pela mesma via.

Durante muitos anos tenho procurado aquilo que convencionou-se chamar Iniciação. Para muitos a oportunidade de obter grandes poderes. Para mim, a chave que abre o portal à minha própria alma, o grande mistério de minha existência, a minha essência. Um fato único e verdadeiro mesmo que o iniciando julgue que seus objetivos não o sejam, pois que ninguém pode fingir almejar o céu sem que suas intenções deixem de ser ouvidas pelos anjos e despertem os demônios.

Deste modo, o Universo é um grande vazio onde nossos mais leves pensamentos ecoam e aquilo que ainda não reconhecemos como nossa Vontade há muito já nos pertence, sendo a realidade viva de nosso Ser espalhada no espaço sem fim. É assim que o Infinito, contemplando nossa Verdadeira Essência, apaixona-se por sua beleza e torna-se seu cúmplice na esperança da união, fazendo surgir todas as condições necessárias à Iniciação, o despertar da chama secreta que aquece nossos corações. Esta flama, quando tornada agende de nossa Vontade, leva à intelecção e assimilação do Grande Arcano, fazendo-nos evoluir ao Uno, destruindo o estado de divisão em que nos encontramos.

Muito tenho ouvido falar de homens e mulheres que, tendo realizado grandes feitos, tornam-se temidos e respeitados pelos demais; a outros tantos tenho visto desejar estes mesmos poderes sem possuírem a coragem suficiente para empreender o caminho necessário à sua aquisição, assemelhando-se a crianças famintas à espreita do doce alheio; e a uma grande maioria tenho visto, não sem desgosto, adquirir estes poderes e cair no enlevo de suas próprias realizações, perdendo-se nas malhas de ilusões criadas pelos seus próprios desejos. A todos eles considero grandes mestres, pois que através do exemplo de suas vidas tenho visualizado as graças e os perigos que podem ser alcançados na difícil senda que escolhi. Deste modo, aprendi que a Iniciação é uma constante em nosso caminho, sendo necessário estar sempre alerta não para os perigos que vêm de fora, mas para aqueles gerados no mais íntimo de nosso Ser, aqueles que de tão ocultos não se apresentam com facilidade à nossa visão ordinária e que, como tal, exercem sobre nós o mais forte feitiço, mantendo-nos prisioneiros de nossa própria mediocridade. E, convenhamos, mediocridade e Iniciação são forças antagônicas não podendo ocupar o mesmo espaço e dividir o espírito daqueles que com nobreza de propósito procuram o caminho da Sabedoria.

Infelizmente, muitos dos que se dizem possuidores do status de Iniciado estão infestados de vulgaridade, vale lembrar que se dizer não é Ser, mas não pretendo aqui entrar nesta questão, mesmo porque, cada indivíduo é deus ou demônio em seu próprio Universo, não esquecendo que para alcançar a Sabedoria é necessário descer aos infernos, criando asas para alçar aos céus. Cada um deve traçar a sua senda em direção às estrelas da maneira que julgar conveniente para si mesmo.

Eu, por mim, tenho descido aos abismos de minha própria constituição por muitas vezes e por outras tantas ainda descerei até que aprenda não a eliminar, mas a transmutar, como os alquimistas, chumbo em ouro. Nestas minhas viagens ao interior da terra encontrei por muitas vezes o demônio e me surpreendi por ver em seu rosto minhas próprias feições. A princípio fugi aterrorizada negando minha própria natureza, a posteriori, a maturidade adquirida em minha jornada me fez retornar e olhá-lo de frente, toquei sua face e, sentindo o calor que emanava de sua pele, eu o amei. Ele era vida…

Recordei as alegorias bíblicas em que o demônio, sob forma serpentina, oferece aos personagens adâmicos a degustação do fruto da árvore da sabedoria. Assim, tomei em minhas próprias mãos o ansiado fruto da sapiência que meu anjo negro com tanta presteza me oferecia, sentindo bruxulear uma luz dentro de mim, talvez um reflexo da chama divina que em mim ocultamente ardia.

Assim, após a tormenta inicial, produto do choque comigo mesma, compreendi que a estética universal concebe toda a existência como fazendo parte da maravilhosa obra da criação e percebi como eram tolos os meus conceitos maniqueístas que tentavam delimitar o bem e o mal. O Absoluto não permite bifurcações.

Visualizei Lúcifer, o mais belo e amado de Deus, submetendo-se à queda e trazendo consigo a luz que ilumina o caminho dos mortais e, do fundo de minha alma franzina, eu humildemente agradeci.

O despertar para realidades mais profundas é apenas o começo da nobre tarefa de sublimar nossos sentimentos mais íntimos e tomar as rédeas da carruagem de nossas próprias vidas que não devem ter outro senhor que nós mesmos. Isto é saber erguer-se acima da mediania e dos adormecidos, sendo o mais valoroso de todos os talentos que um homem pode possuir.

Visita Interiora Terrae Rectificando Invenies Occultum Lapiden:eis a vereda que leva à grande emancipação. Para realizar esta longa e árdua viagem são necessários como apetrechos uma grande coragem e uma grande Vontade de chegar, uma Vontade que seja inabalável diante dos percalços e das decepções. É necessário vasculhar os recôncavos mais obscuros de nossa alma e, de modo destemido, questionar todas as nossas ações, buscando a origem de nossos desejos, verificando se não são fruto da cegueira imposta pelo orgulho e ambição, geralmente companheiros inseparáveis de nossa natureza animal.

Todo este processo é a busca do conhecimento de si mesmo, de suas virtudes e potencialidades. Esta “autognose”, embora nos leve à descoberta daquilo que possuímos, também nos desperta para aquilo que nos falta. É a tomada consciente de nossa inconfessa descontinuidade, o estado mutilado de nossa atual existência.

A Grande Obra, objetivo maior do mundo hermético, poderia ser chamada de a Grande União, pois é também a Arte de unir-se com aquilo que nos complementa, buscando, consequentemente o resgate do Todo.

O homem vive em angústia assediado por uma solidão que o assombra em meio a grandes multidões. Esta sensação é a grande inspiração dos mais diversos sistemas que buscam o êxtase supremo, a aniquilação deste estado truncado que assola nossas vidas. O insulamento, reflexo de nosso estado incompleto, gera o desejo de vivenciar o Todo na junção com o oposto. Este apetite constante da união com o outro é o que chamamos de AMOR. A aliança dos contrários, motivada por este sentimento, pode produzir um alívio temporário no instinto de união, mas logo a inquietação começa a tomar forma e outros objetos de nosso desejo começam a surgir, justificamos dizendo ser a rotina que se instalou.

A insatisfação é infinita porque infinitas são as possibilidades de combinação. A única chance de escapar deste processo ressurgente é a união com aquilo que contém em si todas as possibilidades, pois é onisciente, onipresente e onipotente: o Universo, aquilo que convencionamos chamar de Deus.

Deus é o objeto adorado sob diversos nomes em todas as filosofias e religiões e, sob todos os aspectos, é ele que nos reintroduz ao paraíso perdido onde, como relatado pela Bíblia, encontramos a bem-aventurança.

A Iniciação é uma introdução à Grande Obra e, consequentemente, ao conhecimento de Deus. Note que eu me referi a uma introdução ao conhecimento de Deus e não a uma consecução plena deste conhecimento. A Iniciação nos mostra o caminho, mas a consumação depende de nosso próprio esforço e é fruto de nossas conquistas.

Julgo que aqui está a beleza maior do caminho: saber que se chegou ao final ou ao princípio de tudo por seu próprio mérito, através das batalhas vencidas pelo guerreiro que existe em cada um de nós. E que aqui não entenda o vulgo um repúdio ao trabalho incansável de homens e mulheres que unidos sob os auspícios de ordens iniciáticas buscam preservar os antigos conhecimentos. Eles exercem a nobre tarefa de manter a chama do crisol acesa para que outros possam vir a experimentar e patentear suas nobres qualidades, encontrando o caminho até o paraíso perdido. Meu objetivo, pelo contrário, é enaltecer e divulgar este trabalho, pois é graças a ele que obtenho o conhecimento necessário à minha sublimação.

Muitos são os caminhos que levam a Deus, como diz a sabedoria popular, uns oferecem a salvação através da subserviência, outros dizem conquiste-a e fornecem o conhecimento que pode nos amparar em direção à grande consecução. Que cada um possa optar com sabedoria…

A conquista é o caminho oferecido pelas Ordens detentoras de gnose e o que mais atiça a curiosidade do profano no que se refere a elas são os ritos de Iniciação.

Estes ritos têm sua origem no primordial desejo do homem em se aproximar de Deus e tiveram sempre como fundamento a mágica possibilidade de dotar o Iniciado de poderes sobre-humanos. A princípio esta alegoria foi tomada na sua íntegra e realmente acreditava-se que o Iniciado era um super-homem com poderes de voar, andar sobre as águas e tudo manipular. Através dos tempos a evolução do pensamento humano colocou as coisas nos seus devidos lugares e tanto mudou o sentido de Deus, quanto o sentido da Iniciação. Hoje, embora ainda existam mentes estreitas que insistem em procurar esta experiência com a finalidade de obter a realização de suas paixões, temos outras que identificam com clareza o sentido profundo por traz da alegoria.

O rito de Iniciação é antes de tudo um sacramento que, além de permitir o ingresso do pretendente numa seita ou religião, permite o acesso a níveis diferentes de consciência tanto mais profundos quanto maior for o seu grau. Aqui pode haver uma grande ilusão se acreditarmos que a Iniciação principia e finda dentro das paredes de um templo, pois ela se estende para além do momento e perdura por toda a vida. É como a semente que, após iniciada no útero da terra mãe, busca vencer os limites que esta impõe à ânsia de beijar o Sol.

O templo e aquilo que nele se passa são a representação de situações incomuns de vida, enriquecidas por ensinamentos a serem desvendados durante e após o ritual. É deste modo que algo mais profundo aflora e permite ao candidato se defrontar com faces de seu próprio Eu, testando no crisol suas próprias qualidades que devem ser avaliadas sem maniqueísmo. Todo este processo permite ao Iniciado uma espécie de nascimento consciente, dirigido por sua própria força e Vontade. Não é mais o útero que mecanicamente expulsa o feto, mas o nascituro que luta para se libertar da sonolência mórbida que a natureza lhe impõe.

Este nascimento é apenas o princípio da ação que se prolonga durante a jornada do candidato, sendo assim, a Iniciação primeira perdura até o próximo rito e cabe ao Iniciado elevar a sua própria consciência para a assimilação da próxima experiência. A conquista é pessoal e intransferível!

Parece ainda existir um outro lado em isso tudo, aquele da energia que se concentra no local e que pode ser sentida e quase tocada, algo que parece marcar o espírito e acompanhar a nossa jornada, talvez seja o que se convencionou chamar egrégora, mas não tenho conhecimento suficiente para definir.

Toda esta gama de experiências só será possível a partir de um grupo de Iniciadores que estejam realmente imbuídos de seriedade e amor pela gnose que pretendem transmitir e que, mesmo com toda a seriedade e respeito que o momento exige, consigam criar um clima de cordialidade que leve o candidato a sentir, apesar da expectativa, confiança no que está por vir. Além disto, é necessário que aquele que pretende a gnose esteja receptivo e disposto a realmente absorver os ensinamentos através de cada ponto, cada vírgula e cada olhar, ou seja, que sua boa vontade esteja direcionada para viver intensamente cada minuto do seu renascer.

Eis a conspiração perfeita que antecede a chegada do Filho do Grande Arcano! Embora esta criança possa nascer sem jamais ter sido vivenciado um ritual ou mesmo jamais se deixar conhecer, apesar de…

Seu útero é o espírito, o berço que o embala é o corpo que o contém. As paredes do templo são os traços curvilíneos de meu corpo, o Iniciador se chama Eu e o elixir em que sou banhada e do qual experimento se chama Vontade.

Pensamentos abstratos são difíceis de expor e nada mais abstrato que a própria Iniciação. Em cada uma delas um pensamento, uma emoção, um desejo transformado em Vontade, uma experiência única vivenciada de modos diferentes, pois cada ser é único em seu próprio Universo.

E se tivesse aqui que orientar a um irmão que ainda está por vir eu diria:

Faze o que tu queres será o todo da Lei.

Amor é a lei, amor sob vontade.

O presente texto foi autorizado por Soror BABALON para publicação no site do Acampamento Opus Solis.