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Os juristas romanos sabiam perfeitamente o que significa ‘profanar’. Sagradas ou religiosas eram as coisas que de algum modo pertenciam aos deuses. [..] consagrar (sacrare) era o termo que designava a saída das coisas da esfera do direito humano, profanar, por sua vez, significava restituí-las ao livre uso dos homens. ‘Profano’ — podia escrever o grande jurista Trebácio — ‘em sentido próprio denomina-se àquilo que, de sagrado ou religioso que era, é devolvido ao uso e à propriedade dos homens’. E ‘puro’ era o lugar que havia sido desvinculado da sua destinação aos deuses dos mortos e já não era ‘nem sagrado, nem santo, nem religioso, libertado de todos os nomes desse gênero’ (D. 11, 7, 2). (AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. p. 58).

O mundo se tornou cheio de verdades, dogmas intransponíveis. Contra dogma não há argumento. Sem argumento, sem diálogo, sem confronto com verdades duras, o que envolve superação de preconceitos e tabus, não há construção de algo novo, mas apenas a conservação do velho, desgastado, rançoso.

Geralmente uma impossibilidade de diálogo com o outro reflete uma intolerância ao diálogo consigo mesmo.

As pessoas tendem a idealizar e a cristalizar seus ideais, assim como uma imagem é fixada na fotografia. É nada saudável criar ideais impossíveis para si próprio, imagine querer que as pessoas e o mundo alcancem ideais que nem mesmo quem os idealizou é capaz de alcançar…

Ao agirmos como idealizadores “perfeitos” acabamos por esconder o egocentrismo de idealizar o mundo à semelhança de nossos pensamentos. Quando confrontados, tentamos disfarçar o próprio ego com argumentos que não nos pertencem, como a cultura social ou familiar, a religião e o pensamento de ídolos.

Fato é que tornamos várias verdades pessoais como se sagradas fossem. Elas são colocadas num espaço transcendental, onde nenhum argumento é capaz de atingir, um lugar dogmático e sagrado.

Há uma linha tênue entre tornar um “ideal” sagrado e amaldiçoar a si próprio. É comum que os pontos mais intocáveis das possibilidades de ser são aqueles que nos amaldiçoam, pois vivemos condenados a limitar nossa visão de mundo àquilo que cristalizamos como verdade.

Quando se tenta pautar o mundo, passa-se a ser pautado pelos ideais do que o mundo deveria ser. Assim, pouco a pouco, a pessoa perde a noção de si própria como referencial de vida e se preenche com a vida do outro. O indivíduo fica alienado de si mesmo. Nas famosas palavras de Jean-Paul Sartre, “O inferno são os outros. Projetamos nos outros a nossa realização e aguardamos deles algo que amenize o vazio que nos habita.”

Para atingir aquele ideal pessoal de sacralidade, começamos a nos impor inúmeras limitações; enfim, sacrificamos toda a vida e nos tornamos mortos em relação a nós mesmos. Não por menos, sacrificar, em sua etimologia, significa “tornar sagrado” (latim, sacrificium, sacra + facere).

Ocupar de si mesmo é difícil e passa longe de apenas pensar positivo e saltitar sorridente, como romantizam alguns. Ocupar de si envolve reflexão; é doloroso – até porque revela um buraco existencial. Consiste em descobrir a própria natureza, aceitar os próprios vícios, virtudes e limites.

Quando se sacralizam ideais, tudo que neles não se encaixa é lançado para um espaço abominado, uma espécie de inferno. É necessário coragem para mergulhar nesse inferno que nos habita, onde guardamos tudo aquilo que chamamos anormal, impossibilidade, pecado, medo, tabu e preconceito.

Num diálogo interior, conseguimos nos confrontar e verificar que povoamos continuamente esse espaço infernal a cada vez que elegemos ideais como elementos sagrados, afinal todas as demais possibilidades não-ideais são relegadas para esse inferno. Assim, inúmeras possibilidades da vida são continuamente levadas para um espaço de castração e morte.

Mergulhar no próprio inferno para investigar os objetos lá guardados pode ser terrível demais. Talvez uma boa estratégia para reduzir a população desse inferno interior e tornar a visita ao submundo um pouco mais agradável seja a de dar uma espiada no falso céu de ideais perfeitos e ver o que pode ser profanado lá. Para cada “ideal perfeito” profanado, todas as possibilidades não-ideais retornam à imanência. Assim, aquilo que habitava o local de castração e morte retoma a possibilidade de exercício de vida.

Então, caro leitor, caso opte por essa estratégia, o que você precisa profanar?

Autoria: Frater אל-אמא-יה

Arte: La profanación de la hostia, de Salvador Dali.